Em um diálogo com os irmãos Adimanto
e Glauco, filhos de Aríston, sobre a educação dos jovens gregos, Sócrates argumentou
que a música e a ginástica eram fundamentais para a formação das
crianças, de forma geral, e dos guardiões, de forma específica, e que os
encarregados da cidade – que ele (Sócrates), juntamente com seus amigos, está
idealizando – devem estar vigilantes para que as inovações na música e na ginástica
não atentem contra suas respectivas regras, pois isto pode ocasionar
modificações significativas nos costumes, nas leis e nos hábitos. A partir
deste diálogo passei a refletir sobre a relação que há entre o gênero musical e a Segurança Pública.
Logo no início do diálogo, Sócrates
vai dizer que “deve ter-se cuidado com a mudança para um novo gênero musical,
que pode pôr tudo em risco. É que nunca se abalam os gêneros musicais sem
abalar as mais altas leis da cidade”. Adimanto concordou dizendo que é através
da música “que a inobservância das leis facilmente se infiltra passando despercebida”.
Sócrates acrescentou dizendo que é por meio de brincadeiras aparentemente
inocentes e desprovidas de maldades que a corrupção se introduz “aos poucos,
deslizando mansamente pelo meio dos costumes e usanças”. “Daí deriva, já maior”,
disse Adimanto, “para as convenções sociais; das convenções passa às leis e às constituições
com toda a insolência, ó Sócrates, até que, por último, subverte todas as
coisas na ordem pública e na particular”.
Chega-se à conclusão de que o gênero
musical é de importância fundamental no processo educacional das crianças e dos
jovens para a manutenção do comportamento civilizado e dos bons hábitos herdados
tais como, diz Sócrates: “o silêncio que os mais novos devem guardar perante os
mais velhos; o dar-lhe lugar e levantarem-se; os cuidados para com os pais; o
corte de cabelo, o traje, o calçado e toda a compostura do corpo, e demais
questões desta espécie”.
Observa-se no Brasil, mas não só
aqui, a proliferação de gêneros musicais corruptivos que se enquadram
perfeitamente no diálogo acima. O funk, o pagode, o axê e o hip rock
exemplificam bem os gêneros musicais que abalam a estrutura normativa da moral
e das leis positivas. A exploração da sensualidade e do mau gosto é nítida nesses
gêneros, estimulando a concupiscência e libertando todo tipo de intemperança. Como denunciou
Mário Ferreira dos Santos, há mais de 60 anos, os “bárbaros intramuros”,
vinculados à arte, cometeram o impropério de dissociar a estética da ética
,
ou seja, de desconsiderar completamente a ideia de
summum bonum (o Sumo-bem, que se refere Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino etc., ou seja, a
razão razoável, que não deixa de lado os
valores e as ideias de bem e de belo).
Esta relação entre estética e
ética é tratada no diálogo acima quando Sócrates diz que “a beleza ou a fealdade
de forma dependem do bom ou do mau ritmo. Logo, a boa qualidade do discurso, da
harmonia, da graça ou do ritmo depende da qualidade do caráter, não daquele a
que, sendo debilidade de espírito, chamamos familiarmente ingenuidade, mas da
inteligência que verdadeiramente modela o caráter na bondade e na beleza”. Mais
adiante conclui: “Em todas estas coisas [referindo-se as artes de maneira
geral] há, com efeito, beleza ou fealdade. E a fealdade, a arritmia, a desarmonia
são irmãs da linguagem perversa e do mau caráter; ao passo que as qualidades opostas
são irmãs e imitações do inverso, que é o caráter sensato e bom”.
A vulgaridade e a ausência do senso
de obscenidade presentes nos gêneros musicais referidos acima poder ser percebidas também em outras áreas estéticas. Theodore Dalrymple faz referência ao niilismo
estético que assola o cenário contemporâneo e o fascínio artístico pelo
punk
e pelo
grunge, ou seja, pela “adoção deliberada da feiura e do mau gosto”,
denunciando também a separação entre estética e ética. O autor inglês, de várias
obras publicadas no Brasil, estabelece uma relação causal entre a vulgarização do
comportamento e os males sociais que hoje evidenciamos. Referindo-se mais
especificamente à Grã-Bretanha diz: “A bastardia generalizada da Grã-Bretanha
não é sinal de um aumento da autenticidade de nossas relações humanas, mas uma
consequência natural do hedonismo sem limites, que conduz rapidamente ao caos e
à miséria, especialmente entre os mais pobres. Livre-se das regras, e a
discórdia violenta virá em seguida”. Mas o autor faz um alerta deveras importante:
“a revolução nos hábitos britânicos não veio por meio de qualquer erupção vulcânica das
bases; ao contrário, veio como extensão do pensamento da elite intelectual, que
começou a desprezar a tradição”
.
Disto tudo exposto aqui, fica uma
questão para reflexão: qual a política de segurança pública que pode atender às
expectativas da sociedade no que tange à redução e ao controle da incivilidade
e da criminalidade sem que se reverta a barbárie inserida nas artes, de forma
geral, e na música, de forma específica? Ou seja, é possível reduzir a violência e a criminalidade através de políticas públicas de segurança mantendo uma estética dissociada da ética?
Dequex Araújo Silva Junior
Doutor em Ciências Sociais
Membro do Instituto Brasileiro de Segurança Pública
Membro fundador do Instituto Antônio Lacerda