segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O que é desmilitarização e qual o seu sentido?

Escrevi este artigo após participar de uma entrevista à rádio Band News, em agosto de 2014, quando foi tratado sobre a temática da desmilitarização das polícias militares brasileiras. Este tema é bastante polêmico e mexe com tabus institucionais, merecendo, assim, uma análise mais criteriosa e esclarecedora, pois os equívocos são muitos quando se fala da questão, quer no âmbito interno da Corporação, quer no âmbito externo.

É sabido que no Brasil há dois modelos de organizações policial: uma de natureza militar e outra de natureza civil. A primeira é representada pela Polícia Militar, que é responsável pelo policiamento ostensivo direcionado à ordem pública e à defesa da segurança das pessoas; e, a segunda é representada pelas Polícia Civil, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, que são responsáveis, respectivamente, pela investigação criminal e polícia judiciária no âmbito dos estados, pela investigação criminal e polícia judiciária no âmbito da união e pelo policiamento ostensivo de trânsito nas rodovias nacionais.


Polícia Rodoviária Federal
Desde a redemocratização que a natureza militar das PMs passou a ser questionada por uma parte significativa das elites intelectuais e políticas, notadamente aquelas de ideologia esquerdista. Nos últimos anos essa discussão aumentou, inclusive, com proposta de modificação constitucional para esse fim (PEC 51, datada de 2013). Entretanto, o que se observa nessas intenções de modificação é a ausência de um entendimento claro do que é desmilitarização e o seu sentido, pois o tema se inclui no rol das questões controversas, ou seja, das questões onde não há um posicionamento firme e claro a favor ou contra ao processo. Ademais, o tema se constitui num tabu dentro das corporações policiais militares.

Essa discussão sobre a polícia como organização burocrática-militar não é algo recente. Muitos estudiosos em polícia, como o norte americano Egon Bittner, já ressaltavam que este modelo organizacional híbrido é uma deficiência séria, pois se constitui numa profissionalização incompleta que prejudica o mandato policial dentro das sociedades democráticas. Segundo este estudioso, o formalismo interno das organizações militares prescreve, regula e disciplina as relações internas (entre os militares), mas não faz o mesmo no âmbito externo. Isso se constitui num problema, pois as organizações policiais necessitam formalizar também externamente as relações entre polícia e cidadão, reduzindo, assim, a margem do poder discricionário. Ou seja, nas palavras de Bittner, que os “esforços para profissionalizar o trabalho policial usando características importadas de disciplinas militares rígidas servem para criar tendências que deslocam a má conduta para áreas não regulamentadas, porque as regulamentações pertinentes ainda não foram formuladas” (2003, p. 153).


Bittner está tratando das polícias norte-americanas, que são vistas como organizações semi-militares, mas é importante fazer uma ressalva: estas polícias se assemelham apenas no âmbito organizacional, ou seja, no modelo burocrático, onde o sistema de hierarquia e cargos apresenta algumas similitudes com as forças armadas como, por exemplo, a figura do sargento, tenente e capitão nos departamentos de polícia norte-americanos.

Formatura da Academia de Polícia de NYPD

No Brasil, as polícias militares, após o golpe militar, não só adquiriram o modelo burocrático-militar do Exército em quase toda a sua amplitude (o sistema hierárquico vai de soldado até coronel, excluindo-se então os postos de generais), como também adquiriram a cultura organizacional a partir do processo de formação, treinamento, linguagem, sistema de valores, símbolos etc. Ademais, passaram a ser controladas pelo Exército, tornando-as forças reserva e auxiliar, conforme Constituição Federal, bem como todos os procedimentos institucionais como código militar, regulamentos, manuais etc. Esclarecendo um pouco mais. Enquanto as polícias norte-americana e polícias militares da Europa passaram apenas pela militarização no âmbito burocrático, as polícias militares brasileiras passaram pela militarização burocrática, profissional e institucional, que no modelo de homogeneização estabelecido por Walter Powell e Paul DiMaggio, para analisar comparativamente instituições que atuam em áreas semelhantes, significa que há um isomorfismo das polícias militares nacional com as forças armadas, respectivamente, nos níveis mimético, normativo e coercitivo. Esse processo de constrangimento envolvendo não só as polícias militares e as forças armadas, mas também envolvendo as polícias civis e o poder judiciário, foi tratado por Arthur Costa em seu livro Entre a Lei e a Ordem.


Em suma, enquanto as polícias norte-americanas e as polícias militares da Europa sofreram, grosso modo, apenas o constrangimento institucional (isomorfismo ou homogeneização) no nível mimético, com a adoção do modelo burocrático-militar do Exército, as polícias militares brasileiras, além desse constrangimento mimético, passaram também pelo isomorfismo nos níveis normativo, com a adoção da cultura militar, e coercitivo, com o controle por parte do Exército e a adoção dos seus procedimentos institucionais.

Formatura de Policiais Militar da Bahia

A partir desse esclarecimento, é necessário estabelecer que tipo de desmilitarização está se requerendo dentro do atual contexto brasileiro. Meu posicionamento diante do problema, externado, inclusive, na entrevista concedida à Band News, é de que a desmilitarização deve ocorrer, mais especificamente, nos níveis normativo e coercitivo, considerando o mimético como factível de permanecer, pois entendo que não prejudica o desenvolvimento de um ethos policial que se adeque ao que se almeja dentro da atual conjuntura democrática, mas de elevado nível de violência criminal. Isso significa dizer que a desmilitarização não significa nem a extinção das polícias militares e nem a eliminação dos princípios tão ressaltados pela Corporação, a saber: os princípios da hierarquia e da disciplina, pois estes são princípios de qualquer burocracia racional no sentido weberiano.

Qual o motivo desse posicionamento? Ele ocorre do meu entendimento de que os isomorfismos normativo e coercitivo desenvolvem nos policiais militares um ethos militar que enfatiza de forma excessiva o uso da força ao invés da negociação, dissuasão e proporcionalidade do uso da força. Soldados combatem inimigos com uso da força máxima disponível, tendo como objetivo eliminar ou aprisionar o inimigo durante os combates; policiais, de forma diferenciada, fiscalizam o cumprimento das leis por parte dos cidadãos e levam às instâncias judiciais os indivíduos que cometem atos contrários às leis, utilizando-se da força proporcional para alcançar tal desiderato. Ou seja, a forma como se emprega a força e os objetivos almejados é que diferencia a polícia das forças armadas.

Tropa Formada das Forças Armadas

Para superar o isomorfismo no nível normativo deve se mudar a cultura organizacional a partir de uma formação pautada em novos valores, visando criar um ethos policial para o exercício da atividade de policiamento mais adequada às expectativas democráticas, onde o policial passa a se constituir num protetor dos direitos civis do cidadão; para superar o isomorfismo coercitivo deve se retirar a PM do controle do Exército e adotar procedimentos institucionais mais condizentes com a atividade policial, tendo como fulcro as regras democráticas e os princípios dos direitos humanos, visando proteger, inclusive, os direitos civis dos próprios policiais militares, pois o reconhecimento dos direitos civis do cidadão por parte da polícia passa necessariamente pelo reconhecimento dos direitos civis daqueles.

Não obstante me posicionar em prol da desmilitarização normativa e coercitivo, entendo também que não é uma tarefa fácil, pois depende não só da vontade política, mas também da vontade das autoridades policiais que ora comandam as corporações estaduais. Ademais, uma modificação tão complicada como essa depende também da construção de um paradigma apropriado para fundamentar essas transformações. Associado a tudo isso, a modificação na estrutura do sistema policial nacional se faz necessário, onde o ciclo completo também se constitui numa etapa primordial para o processo de profissionalização das polícias militares no sentido da construção de um ethos policial que atenda não só as necessidades de garantia dos direitos individuais dos cidadãos, mas também de uma maior efetividade na prevenção e repressão da criminalidade que ora se destaca negativamente e engendra uma sensação de insegurança sem precedente na história recente do país.

Por fim, a defesa da manutenção do isomorfismo mimético se dá por acreditar que a questão da disciplina e da uniformidade de comportamento são preponderantes para as organizações de natureza militar, diferenciando-as, assim, das organizações de natureza civil. Ademais, entendo que as organizações policiais de natureza militar são necessárias, principalmente dentro de contextos sociais onde a ausência de disciplina é contumaz como é o caso da sociedade brasileira, onde tal característica foi ressaltada com muita propriedade pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil, mais especificamente no Capítulo 5, intitulado O homem Cordial.



À guisa de conclusão, pensar que podemos prescindir de uma organização de natureza militar em um país marcado por uma série de crises de autoridade é de um equívoco abominável, pois ela reflete um grau de disciplina, uniformidade e poder que garante a governabilidade estatal, a segurança e a ordem públicas nas diversas realidades nacionais. Entretanto, há de se moldar seu sistema normativo e profissional para se adequar às novas exigências democráticas e de elevado índice de criminalidade. O processo de modificação já se iniciou com a mudança nos currículos de formação e de organização associativa em prol da defesa dos direitos dos policiais, mas muita coisa ainda se faz necessário para a consolidação de um modelo de Polícia Militar que atenda as expectativas cognitivas e normativas dos públicos interno e externo.  
      




A violência Predatória

Este artigo foi escrito em abril de 2014 quando eclodiu uma série de movimentos de paralisação das polícias militares em vários estados. A temática das paralisações das corporações policiais militares serviu como pano de fundo para analisar uma questão mais complexa e bastante contemporânea, a saber, o papel do Estado no controle da violência dentro de um contexto em que a sua pretensão de monopólio vem cada vez mais sendo questionada. Essa situação se agrava ainda mais quando a sociedade tem um ethos não condizente com os princípios da paz, da solidariedade e das virtudes cívicas.

O Estado se justifica porque tem o dever de prover a proteção e garantir a segurança dos indivíduos nos mais diversos espaços sociais. A sociedade sem as formas de controle social não é uma sociedade, mas um simples agregado informe. Dentro desse contexto, onde o poder estatal, através do aparato coercitivo, deixa de exercer o controle social formal, a insegurança passa a ser total, pois a violência tende a prevalecer nas relações sociais.


A greve da Polícia Militar, um dos subsistemas de controle social formal do Estado, vem possibilitando que diversas formas de violências sejam exteriorizadas nos diversos espaços de convivência, mais especificamente no espaço público. Os telejornais vêm mostrando a violência predatória da população através de diversos saques aos estabelecimentos comerciais devido à presença precária da Polícia Militar nas ruas. Esse tipo de violência reflete bem o nível de raiva dos indivíduos com o sistema econômico que cada vez mais promove injustiça, segregação e frustrações. Ou seja, a ausência do poder político e a insatisfação com o poder econômico engendra a violência predatória no espaço público.


Tende-se a observa esse tipo de ação violenta predatória, praticadas por cidadãos até então, aparentemente, sem histórico de violência e de atos delituosos, como crime, pois uma das características da sociedade moderna é justamente criminalizar cada vez mais os diversos tipos de violência. Entretanto, esta é um atributo humano que aflora quando o indivíduo é tomado por um sentimento de frustração, que por sua vez, gera raiva, fúria, cólera.


Hannah Arendt, em seu livro Sobre a violência,  argumenta "que a violência não é nem bestial, nem irracional [...]"; ela advém frequentemente da raiva, podendo esta ser irracional ou patológico, como qualquer sentimento humano. Por ser um sentimento humano, a ausência da raiva significa a própria desumanização dos homens: “Reagimos com raiva, apenas quando nosso senso de justiça é ofendido, e essa reação de forma alguma reflete necessariamente uma injúria pessoal [...]”. Com isso, “Recorrer à violência em face de eventos ou condições ultrajantes é sempre extremamente tentador em função de sua inerente imediação e prontidão”. Logo, a violência que se origina da raiva, em certos momentos, é a única forma de reequilibrar a balança da justiça. Arendt diz ainda que “a raiva e a violência que às vezes – mas não sempre – a acompanha pertencem às emoções ‘naturais’ do humano e extirpá-las não seria mais do que desumanizar ou castrar o homem”. Ou seja, é a ausência do sentimento de raiva que se constitui num fenômeno patológico e, por conseguinte, desumano.


A partir dessas observações de Arendt, as ações predatórias da população nos momentos de precariedade do controle formal demonstram muito mais o nível de insatisfação e de raiva da população com os sistemas político e econômico (onde o primeiro reforça o nível de injustiça social promovido pelo segundo) do que uma simples ação desviante praticada por pessoas vista por muito como “inescrupulosas”, “irracionais”, "imorais" e “delinquentes”.

Essa violência predatória praticada por cidadãos, oportunizada pela falha do Estado em prover proteção social e civil, segue uma lógica racional, onde o recurso à violência se justifica e torna-se um instrumento para se alcançar um determinado fim. Isto é, essa violência predatória é o meio encontrado pelas populações mais carentes econômica e socialmente de minimizar as privações materiais.


Dentro de uma visão mais crítica e cortando na própria carne, podemos inferir que a presença da polícia nas ruas, mais especificamente nas áreas deterioradas e desprovidas de bens coletivos, é também uma forma de manter as injustiças sociais por meio do controle social formal do Estado e dos grupos dominantes economicamente sob as massas carentes e desamparadas pelos poderes públicos. Nesse sentido, não é elevando o número de policiais nas favelas que vai resolver a questão da violência predatória, mas acabar com as próprias favelas, símbolos da miséria e da degenerescência nacional.


Uma sociedade desigual econômica e socialmente. é um vulcão prestes a explodir! Esse tipo de sociedade gera insatisfações e frustrações, logo, raiva, logo violência. Antes de criminalizar e demonizar os populares que saqueiam as lojas de eletrodomésticos, devemos criminalizar e nos indignar com a política econômica e, especialmente, a política tributária nacional que sangra por segundo os nossos míseros e suados salários frutos dos esforços laborais diários (é só ficar parado em frete ao “impostômetro” para constatar essa sangria). Antes de observar os miseráveis que correm pelas ruas com os objetos de cobiça produzidos pela indústria cultural como marginais e criminosos, vamos observar mais as políticas adotadas pelos governantes que nos desfavorecem material e ontologicamente. A violência predatória é uma arma dos reprimidos que têm sua condição humana aviltada.


A violência predatória é a arma de quem está na condição de insegurança total; é a arma de quem não tem acesso aos bens coletivos produzidos por todos e usufruídos por pouquíssimos. Se quisermos controlar a violência predatória ou qualquer outro tipo de violência temos que substituir o sentimento de raiva popular pelo sentimento de satisfação. Só a satisfação das necessidades humanas trará a paz e a tranquilidade tão almejada. A extrema desigualdade social é a grande causadora dos diversos tipos de violências, logo não é com política de segurança pública, mas com política pública de segurança, distribuindo de forma mais equitativa os recursos, que poderemos reverter essa situação e reduzir o nível de frustração e de raiva que corrói todos nos. Não é somente com a presença da polícia nas ruas, forma importante de controle social formal, que alcançaremos esse estágio de paz e tranquilidade expectada, ou seja, de segurança, mas uma melhor distribuição de renda e o reconhecimento de grupos discriminados pela sua condição cultura. Com a distribuição de renda de forma equitativa alcançaremos a segurança material; com o reconhecimento das minorias atingiremos a segurança ontológica; com ambas as formas de justiça recorrer-se-á menos à violência predatória e recorrer-se-á mais às formas de solidariedade e cooperação social.