segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A violência Predatória

Este artigo foi escrito em abril de 2014 quando eclodiu uma série de movimentos de paralisação das polícias militares em vários estados. A temática das paralisações das corporações policiais militares serviu como pano de fundo para analisar uma questão mais complexa e bastante contemporânea, a saber, o papel do Estado no controle da violência dentro de um contexto em que a sua pretensão de monopólio vem cada vez mais sendo questionada. Essa situação se agrava ainda mais quando a sociedade tem um ethos não condizente com os princípios da paz, da solidariedade e das virtudes cívicas.

O Estado se justifica porque tem o dever de prover a proteção e garantir a segurança dos indivíduos nos mais diversos espaços sociais. A sociedade sem as formas de controle social não é uma sociedade, mas um simples agregado informe. Dentro desse contexto, onde o poder estatal, através do aparato coercitivo, deixa de exercer o controle social formal, a insegurança passa a ser total, pois a violência tende a prevalecer nas relações sociais.


A greve da Polícia Militar, um dos subsistemas de controle social formal do Estado, vem possibilitando que diversas formas de violências sejam exteriorizadas nos diversos espaços de convivência, mais especificamente no espaço público. Os telejornais vêm mostrando a violência predatória da população através de diversos saques aos estabelecimentos comerciais devido à presença precária da Polícia Militar nas ruas. Esse tipo de violência reflete bem o nível de raiva dos indivíduos com o sistema econômico que cada vez mais promove injustiça, segregação e frustrações. Ou seja, a ausência do poder político e a insatisfação com o poder econômico engendra a violência predatória no espaço público.


Tende-se a observa esse tipo de ação violenta predatória, praticadas por cidadãos até então, aparentemente, sem histórico de violência e de atos delituosos, como crime, pois uma das características da sociedade moderna é justamente criminalizar cada vez mais os diversos tipos de violência. Entretanto, esta é um atributo humano que aflora quando o indivíduo é tomado por um sentimento de frustração, que por sua vez, gera raiva, fúria, cólera.


Hannah Arendt, em seu livro Sobre a violência,  argumenta "que a violência não é nem bestial, nem irracional [...]"; ela advém frequentemente da raiva, podendo esta ser irracional ou patológico, como qualquer sentimento humano. Por ser um sentimento humano, a ausência da raiva significa a própria desumanização dos homens: “Reagimos com raiva, apenas quando nosso senso de justiça é ofendido, e essa reação de forma alguma reflete necessariamente uma injúria pessoal [...]”. Com isso, “Recorrer à violência em face de eventos ou condições ultrajantes é sempre extremamente tentador em função de sua inerente imediação e prontidão”. Logo, a violência que se origina da raiva, em certos momentos, é a única forma de reequilibrar a balança da justiça. Arendt diz ainda que “a raiva e a violência que às vezes – mas não sempre – a acompanha pertencem às emoções ‘naturais’ do humano e extirpá-las não seria mais do que desumanizar ou castrar o homem”. Ou seja, é a ausência do sentimento de raiva que se constitui num fenômeno patológico e, por conseguinte, desumano.


A partir dessas observações de Arendt, as ações predatórias da população nos momentos de precariedade do controle formal demonstram muito mais o nível de insatisfação e de raiva da população com os sistemas político e econômico (onde o primeiro reforça o nível de injustiça social promovido pelo segundo) do que uma simples ação desviante praticada por pessoas vista por muito como “inescrupulosas”, “irracionais”, "imorais" e “delinquentes”.

Essa violência predatória praticada por cidadãos, oportunizada pela falha do Estado em prover proteção social e civil, segue uma lógica racional, onde o recurso à violência se justifica e torna-se um instrumento para se alcançar um determinado fim. Isto é, essa violência predatória é o meio encontrado pelas populações mais carentes econômica e socialmente de minimizar as privações materiais.


Dentro de uma visão mais crítica e cortando na própria carne, podemos inferir que a presença da polícia nas ruas, mais especificamente nas áreas deterioradas e desprovidas de bens coletivos, é também uma forma de manter as injustiças sociais por meio do controle social formal do Estado e dos grupos dominantes economicamente sob as massas carentes e desamparadas pelos poderes públicos. Nesse sentido, não é elevando o número de policiais nas favelas que vai resolver a questão da violência predatória, mas acabar com as próprias favelas, símbolos da miséria e da degenerescência nacional.


Uma sociedade desigual econômica e socialmente. é um vulcão prestes a explodir! Esse tipo de sociedade gera insatisfações e frustrações, logo, raiva, logo violência. Antes de criminalizar e demonizar os populares que saqueiam as lojas de eletrodomésticos, devemos criminalizar e nos indignar com a política econômica e, especialmente, a política tributária nacional que sangra por segundo os nossos míseros e suados salários frutos dos esforços laborais diários (é só ficar parado em frete ao “impostômetro” para constatar essa sangria). Antes de observar os miseráveis que correm pelas ruas com os objetos de cobiça produzidos pela indústria cultural como marginais e criminosos, vamos observar mais as políticas adotadas pelos governantes que nos desfavorecem material e ontologicamente. A violência predatória é uma arma dos reprimidos que têm sua condição humana aviltada.


A violência predatória é a arma de quem está na condição de insegurança total; é a arma de quem não tem acesso aos bens coletivos produzidos por todos e usufruídos por pouquíssimos. Se quisermos controlar a violência predatória ou qualquer outro tipo de violência temos que substituir o sentimento de raiva popular pelo sentimento de satisfação. Só a satisfação das necessidades humanas trará a paz e a tranquilidade tão almejada. A extrema desigualdade social é a grande causadora dos diversos tipos de violências, logo não é com política de segurança pública, mas com política pública de segurança, distribuindo de forma mais equitativa os recursos, que poderemos reverter essa situação e reduzir o nível de frustração e de raiva que corrói todos nos. Não é somente com a presença da polícia nas ruas, forma importante de controle social formal, que alcançaremos esse estágio de paz e tranquilidade expectada, ou seja, de segurança, mas uma melhor distribuição de renda e o reconhecimento de grupos discriminados pela sua condição cultura. Com a distribuição de renda de forma equitativa alcançaremos a segurança material; com o reconhecimento das minorias atingiremos a segurança ontológica; com ambas as formas de justiça recorrer-se-á menos à violência predatória e recorrer-se-á mais às formas de solidariedade e cooperação social.

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