Escrevi este artigo após participar de uma entrevista à rádio Band News, em agosto de 2014, quando foi tratado sobre a temática da desmilitarização das polícias militares brasileiras. Este tema é bastante polêmico e mexe com tabus institucionais, merecendo, assim, uma análise mais criteriosa e esclarecedora, pois os equívocos são muitos quando se fala da questão, quer no âmbito interno da Corporação, quer no âmbito externo.
É sabido que no Brasil há dois modelos de organizações policial: uma de natureza militar e outra de natureza civil. A primeira é representada pela Polícia Militar, que é responsável pelo policiamento ostensivo direcionado à ordem pública e à defesa da segurança das pessoas; e, a segunda é representada pelas Polícia Civil, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, que são responsáveis, respectivamente, pela investigação criminal e polícia judiciária no âmbito dos estados, pela investigação criminal e polícia judiciária no âmbito da união e pelo policiamento ostensivo de trânsito nas rodovias nacionais.
Desde a redemocratização que a natureza militar das PMs passou a ser questionada por uma parte significativa das elites intelectuais e políticas, notadamente aquelas de ideologia esquerdista. Nos últimos anos essa discussão aumentou, inclusive, com proposta de modificação constitucional para esse fim (PEC 51, datada de 2013). Entretanto, o que se observa nessas intenções de modificação é a ausência de um entendimento claro do que é desmilitarização e o seu sentido, pois o tema se inclui no rol das questões
controversas, ou seja, das questões onde não há um posicionamento firme e
claro a favor ou contra ao processo. Ademais, o tema se constitui num
tabu dentro das corporações policiais militares.
É sabido que no Brasil há dois modelos de organizações policial: uma de natureza militar e outra de natureza civil. A primeira é representada pela Polícia Militar, que é responsável pelo policiamento ostensivo direcionado à ordem pública e à defesa da segurança das pessoas; e, a segunda é representada pelas Polícia Civil, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, que são responsáveis, respectivamente, pela investigação criminal e polícia judiciária no âmbito dos estados, pela investigação criminal e polícia judiciária no âmbito da união e pelo policiamento ostensivo de trânsito nas rodovias nacionais.
Polícia Rodoviária Federal |
Essa discussão sobre a polícia como organização burocrática-militar não é algo recente. Muitos estudiosos em polícia, como o norte americano Egon Bittner, já ressaltavam que este modelo organizacional híbrido é uma deficiência séria, pois se constitui numa profissionalização incompleta que prejudica o mandato policial dentro das sociedades democráticas. Segundo este estudioso, o formalismo interno das organizações militares prescreve, regula e disciplina as relações internas (entre os militares), mas não faz o mesmo no âmbito externo. Isso se constitui num problema, pois as organizações policiais necessitam formalizar também externamente as relações entre polícia e cidadão, reduzindo, assim, a margem do poder discricionário. Ou seja, nas palavras de Bittner, que os “esforços para profissionalizar o trabalho policial usando características importadas de disciplinas militares rígidas servem para criar tendências que deslocam a má conduta para áreas não regulamentadas, porque as regulamentações pertinentes ainda não foram formuladas” (2003, p. 153).
Bittner está tratando das polícias norte-americanas, que são vistas como organizações semi-militares, mas é importante fazer uma ressalva: estas polícias se assemelham apenas no âmbito organizacional, ou seja, no modelo burocrático, onde o sistema de hierarquia e cargos apresenta algumas similitudes com as forças armadas como, por exemplo, a figura do sargento, tenente e capitão nos departamentos de polícia norte-americanos.
No Brasil, as polícias militares, após o golpe militar, não só adquiriram o modelo burocrático-militar do Exército em quase toda a sua amplitude (o sistema hierárquico vai de soldado até coronel, excluindo-se então os postos de generais), como também adquiriram a cultura organizacional a partir do processo de formação, treinamento, linguagem, sistema de valores, símbolos etc. Ademais, passaram a ser controladas pelo Exército, tornando-as forças reserva e auxiliar, conforme Constituição Federal, bem como todos os procedimentos institucionais como código militar, regulamentos, manuais etc. Esclarecendo um pouco mais. Enquanto as polícias norte-americana e polícias militares da Europa passaram apenas pela militarização no âmbito burocrático, as polícias militares brasileiras passaram pela militarização burocrática, profissional e institucional, que no modelo de homogeneização estabelecido por Walter Powell e Paul DiMaggio, para analisar comparativamente instituições que atuam em áreas semelhantes, significa que há um isomorfismo das polícias militares nacional com as forças armadas, respectivamente, nos níveis mimético, normativo e coercitivo. Esse processo de constrangimento envolvendo não só as polícias militares e as forças armadas, mas também envolvendo as polícias civis e o poder judiciário, foi tratado por Arthur Costa em seu livro Entre a Lei e a Ordem.
Em suma, enquanto as polícias norte-americanas e as polícias militares da Europa sofreram, grosso modo, apenas o constrangimento institucional (isomorfismo ou homogeneização) no nível mimético, com a adoção do modelo burocrático-militar do Exército, as polícias militares brasileiras, além desse constrangimento mimético, passaram também pelo isomorfismo nos níveis normativo, com a adoção da cultura militar, e coercitivo, com o controle por parte do Exército e a adoção dos seus procedimentos institucionais.
A partir desse esclarecimento, é necessário estabelecer que tipo de desmilitarização está se requerendo dentro do atual contexto brasileiro. Meu posicionamento diante do problema, externado, inclusive, na entrevista concedida à Band News, é de que a desmilitarização deve ocorrer, mais especificamente, nos níveis normativo e coercitivo, considerando o mimético como factível de permanecer, pois entendo que não prejudica o desenvolvimento de um ethos policial que se adeque ao que se almeja dentro da atual conjuntura democrática, mas de elevado nível de violência criminal. Isso significa dizer que a desmilitarização não significa nem a extinção das polícias militares e nem a eliminação dos princípios tão ressaltados pela Corporação, a saber: os princípios da hierarquia e da disciplina, pois estes são princípios de qualquer burocracia racional no sentido weberiano.
Qual o motivo desse posicionamento? Ele ocorre do meu entendimento de que os isomorfismos normativo e coercitivo desenvolvem nos policiais militares um ethos militar que enfatiza de forma excessiva o uso da força ao invés da negociação, dissuasão e proporcionalidade do uso da força. Soldados combatem inimigos com uso da força máxima disponível, tendo como objetivo eliminar ou aprisionar o inimigo durante os combates; policiais, de forma diferenciada, fiscalizam o cumprimento das leis por parte dos cidadãos e levam às instâncias judiciais os indivíduos que cometem atos contrários às leis, utilizando-se da força proporcional para alcançar tal desiderato. Ou seja, a forma como se emprega a força e os objetivos almejados é que diferencia a polícia das forças armadas.
Para superar o isomorfismo no nível normativo deve se mudar a cultura organizacional a partir de uma formação pautada em novos valores, visando criar um ethos policial para o exercício da atividade de policiamento mais adequada às expectativas democráticas, onde o policial passa a se constituir num protetor dos direitos civis do cidadão; para superar o isomorfismo coercitivo deve se retirar a PM do controle do Exército e adotar procedimentos institucionais mais condizentes com a atividade policial, tendo como fulcro as regras democráticas e os princípios dos direitos humanos, visando proteger, inclusive, os direitos civis dos próprios policiais militares, pois o reconhecimento dos direitos civis do cidadão por parte da polícia passa necessariamente pelo reconhecimento dos direitos civis daqueles.
Não obstante me posicionar em prol da desmilitarização normativa e coercitivo, entendo também que não é uma tarefa fácil, pois depende não só da vontade política, mas também da vontade das autoridades policiais que ora comandam as corporações estaduais. Ademais, uma modificação tão complicada como essa depende também da construção de um paradigma apropriado para fundamentar essas transformações. Associado a tudo isso, a modificação na estrutura do sistema policial nacional se faz necessário, onde o ciclo completo também se constitui numa etapa primordial para o processo de profissionalização das polícias militares no sentido da construção de um ethos policial que atenda não só as necessidades de garantia dos direitos individuais dos cidadãos, mas também de uma maior efetividade na prevenção e repressão da criminalidade que ora se destaca negativamente e engendra uma sensação de insegurança sem precedente na história recente do país.
Por fim, a defesa da manutenção do isomorfismo mimético se dá por acreditar que a questão da disciplina e da uniformidade de comportamento são preponderantes para as organizações de natureza militar, diferenciando-as, assim, das organizações de natureza civil. Ademais, entendo que as organizações policiais de natureza militar são necessárias, principalmente dentro de contextos sociais onde a ausência de disciplina é contumaz como é o caso da sociedade brasileira, onde tal característica foi ressaltada com muita propriedade pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil, mais especificamente no Capítulo 5, intitulado O homem Cordial.
À guisa de conclusão, pensar que podemos prescindir de uma organização de natureza militar em um país marcado por uma série de crises de autoridade é de um equívoco abominável, pois ela reflete um grau de disciplina, uniformidade e poder que garante a governabilidade estatal, a segurança e a ordem públicas nas diversas realidades nacionais. Entretanto, há de se moldar seu sistema normativo e profissional para se adequar às novas exigências democráticas e de elevado índice de criminalidade. O processo de modificação já se iniciou com a mudança nos currículos de formação e de organização associativa em prol da defesa dos direitos dos policiais, mas muita coisa ainda se faz necessário para a consolidação de um modelo de Polícia Militar que atenda as expectativas cognitivas e normativas dos públicos interno e externo.
Bittner está tratando das polícias norte-americanas, que são vistas como organizações semi-militares, mas é importante fazer uma ressalva: estas polícias se assemelham apenas no âmbito organizacional, ou seja, no modelo burocrático, onde o sistema de hierarquia e cargos apresenta algumas similitudes com as forças armadas como, por exemplo, a figura do sargento, tenente e capitão nos departamentos de polícia norte-americanos.
Formatura da Academia de Polícia de NYPD |
No Brasil, as polícias militares, após o golpe militar, não só adquiriram o modelo burocrático-militar do Exército em quase toda a sua amplitude (o sistema hierárquico vai de soldado até coronel, excluindo-se então os postos de generais), como também adquiriram a cultura organizacional a partir do processo de formação, treinamento, linguagem, sistema de valores, símbolos etc. Ademais, passaram a ser controladas pelo Exército, tornando-as forças reserva e auxiliar, conforme Constituição Federal, bem como todos os procedimentos institucionais como código militar, regulamentos, manuais etc. Esclarecendo um pouco mais. Enquanto as polícias norte-americana e polícias militares da Europa passaram apenas pela militarização no âmbito burocrático, as polícias militares brasileiras passaram pela militarização burocrática, profissional e institucional, que no modelo de homogeneização estabelecido por Walter Powell e Paul DiMaggio, para analisar comparativamente instituições que atuam em áreas semelhantes, significa que há um isomorfismo das polícias militares nacional com as forças armadas, respectivamente, nos níveis mimético, normativo e coercitivo. Esse processo de constrangimento envolvendo não só as polícias militares e as forças armadas, mas também envolvendo as polícias civis e o poder judiciário, foi tratado por Arthur Costa em seu livro Entre a Lei e a Ordem.
Em suma, enquanto as polícias norte-americanas e as polícias militares da Europa sofreram, grosso modo, apenas o constrangimento institucional (isomorfismo ou homogeneização) no nível mimético, com a adoção do modelo burocrático-militar do Exército, as polícias militares brasileiras, além desse constrangimento mimético, passaram também pelo isomorfismo nos níveis normativo, com a adoção da cultura militar, e coercitivo, com o controle por parte do Exército e a adoção dos seus procedimentos institucionais.
Formatura de Policiais Militar da Bahia |
A partir desse esclarecimento, é necessário estabelecer que tipo de desmilitarização está se requerendo dentro do atual contexto brasileiro. Meu posicionamento diante do problema, externado, inclusive, na entrevista concedida à Band News, é de que a desmilitarização deve ocorrer, mais especificamente, nos níveis normativo e coercitivo, considerando o mimético como factível de permanecer, pois entendo que não prejudica o desenvolvimento de um ethos policial que se adeque ao que se almeja dentro da atual conjuntura democrática, mas de elevado nível de violência criminal. Isso significa dizer que a desmilitarização não significa nem a extinção das polícias militares e nem a eliminação dos princípios tão ressaltados pela Corporação, a saber: os princípios da hierarquia e da disciplina, pois estes são princípios de qualquer burocracia racional no sentido weberiano.
Qual o motivo desse posicionamento? Ele ocorre do meu entendimento de que os isomorfismos normativo e coercitivo desenvolvem nos policiais militares um ethos militar que enfatiza de forma excessiva o uso da força ao invés da negociação, dissuasão e proporcionalidade do uso da força. Soldados combatem inimigos com uso da força máxima disponível, tendo como objetivo eliminar ou aprisionar o inimigo durante os combates; policiais, de forma diferenciada, fiscalizam o cumprimento das leis por parte dos cidadãos e levam às instâncias judiciais os indivíduos que cometem atos contrários às leis, utilizando-se da força proporcional para alcançar tal desiderato. Ou seja, a forma como se emprega a força e os objetivos almejados é que diferencia a polícia das forças armadas.
Tropa Formada das Forças Armadas |
Para superar o isomorfismo no nível normativo deve se mudar a cultura organizacional a partir de uma formação pautada em novos valores, visando criar um ethos policial para o exercício da atividade de policiamento mais adequada às expectativas democráticas, onde o policial passa a se constituir num protetor dos direitos civis do cidadão; para superar o isomorfismo coercitivo deve se retirar a PM do controle do Exército e adotar procedimentos institucionais mais condizentes com a atividade policial, tendo como fulcro as regras democráticas e os princípios dos direitos humanos, visando proteger, inclusive, os direitos civis dos próprios policiais militares, pois o reconhecimento dos direitos civis do cidadão por parte da polícia passa necessariamente pelo reconhecimento dos direitos civis daqueles.
Não obstante me posicionar em prol da desmilitarização normativa e coercitivo, entendo também que não é uma tarefa fácil, pois depende não só da vontade política, mas também da vontade das autoridades policiais que ora comandam as corporações estaduais. Ademais, uma modificação tão complicada como essa depende também da construção de um paradigma apropriado para fundamentar essas transformações. Associado a tudo isso, a modificação na estrutura do sistema policial nacional se faz necessário, onde o ciclo completo também se constitui numa etapa primordial para o processo de profissionalização das polícias militares no sentido da construção de um ethos policial que atenda não só as necessidades de garantia dos direitos individuais dos cidadãos, mas também de uma maior efetividade na prevenção e repressão da criminalidade que ora se destaca negativamente e engendra uma sensação de insegurança sem precedente na história recente do país.
Por fim, a defesa da manutenção do isomorfismo mimético se dá por acreditar que a questão da disciplina e da uniformidade de comportamento são preponderantes para as organizações de natureza militar, diferenciando-as, assim, das organizações de natureza civil. Ademais, entendo que as organizações policiais de natureza militar são necessárias, principalmente dentro de contextos sociais onde a ausência de disciplina é contumaz como é o caso da sociedade brasileira, onde tal característica foi ressaltada com muita propriedade pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil, mais especificamente no Capítulo 5, intitulado O homem Cordial.
À guisa de conclusão, pensar que podemos prescindir de uma organização de natureza militar em um país marcado por uma série de crises de autoridade é de um equívoco abominável, pois ela reflete um grau de disciplina, uniformidade e poder que garante a governabilidade estatal, a segurança e a ordem públicas nas diversas realidades nacionais. Entretanto, há de se moldar seu sistema normativo e profissional para se adequar às novas exigências democráticas e de elevado índice de criminalidade. O processo de modificação já se iniciou com a mudança nos currículos de formação e de organização associativa em prol da defesa dos direitos dos policiais, mas muita coisa ainda se faz necessário para a consolidação de um modelo de Polícia Militar que atenda as expectativas cognitivas e normativas dos públicos interno e externo.
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