domingo, 11 de junho de 2017

Vivenciamos no Brasil um momento de crise? Sem dúvidas! Mas qual?

Inicio esse breve texto a partir de quatro fatos que me chamaram a atenção dentro da atual conjuntura nacional. O primeiro foi à enquete fatídica de um determinado programa de televisão, não menos fatídico, que perguntou aos participantes se socorreriam um policial levemente ferido ou um traficante gravemente ferido em um acidente. O segundo foi à morte recorrente de policiais militares no Rio de Janeiro por conta da guerra do tráfico, onde, inclusive, culminou com a queda de um helicóptero da Polícia Militar. O terceiro fato foi à prisão, em São Paulo, de algumas dezenas de advogados, inclusive, o vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, por envolvimento com o crime organizado. Por fim, à queda de braço entre o legislativo nacional e o judiciário, mais especificamente entre o presidente do Senado, Renan Calheiros, e o ministro do Supremo, Marco Aurélio.  

Esses fatos se conectam, assim entendo, por fazerem parte de uma única crise. Muitos falam de uma crise política, outros de uma crise jurídica, outros de uma crise moral. Estas e muitas outras crises fazem parte de uma única crise, a saber: a crise de autoridade! Ou seja, o que presenciamos no Brasil é uma crise da autoridade, no âmbito geral, e que identificamos nas diversas esferas da vida, de forma específica: crise de autoridade política, jurídica, moral, familiar, religiosa, educacional etc.


Recorrendo a Hannah Arendt, em sua obra Sobre a Violência, a autoridade é definida, grosso modo, como uma forma inquestionável de reconhecimento (legitimidade) daqueles que se pede que obedeçam. Exemplificando; os filhos devem obedecer aos pais, pois a autoridade destes é considerada como natural; os fieis devem obediência aos sacerdotes, pois a autoridade destes é conferida por Deus; os cidadãos devem obedecer aos governantes, pois a autoridade destes foi conferida pelas normas constitucionais; os indivíduos devem obedecer aos princípios morais, pois tal autoridade foi conferida pela tradição, ou seja, pelas gerações passadas; os indivíduos devem obediência às leis, pois estas foram produzidas pelas autoridades constituídas pela própria lei para legislar nas diversas esferas (esfera executiva, esfera legislativa e esfera judiciária). Em fim, deve-se obediência a uma determinada pessoa, cargo ou instituição, pois foram conferidas autoridade para exercer determinado poder de mando.


Como se observa acima, a definição de autoridade estabelece o seguinte binômio: mando/obediência. Numa relação que envolva autoridade há aquele que manda e aquele que obedece, onde quem manda prescreve condutas que devem ser seguidas pelos que têm a obrigação de obedecer, onde tais mandamentos possuem também o seu binômio: deves/não deves. É claro que quem manda deve possuir legitimidade para o exercício da autoridade, que, por sua vez, é conferida (a fonte) quer pela natureza, quer por Deus, quer pelas normas positivas, quer pela tradição etc. Hans Kelsen, em sua magistral obra Teoria Pura do Direito, diferencia muito bem o mando que possui autoridade daquele mando que não possui, quando cita que um indivíduo obedece ao mandamento de um assaltante não por este possuir autoridade, mas por recorrer à violência ou ao uso da violência para exigir obediência, diferentemente do mandamento de um fiscal da receita que determina o pagamento de um tributo e as pessoas obedecem, pois o mesmo detém autoridade cuja fonte é a norma jurídica. Com isso, observa-se que a autoridade não é exercida pela força, mas pelo reconhecimento de quem obedece. Nesse sentido, há uma questão de justiça que perpassa o exercício da autoridade, pois as pessoas obedecem a um mandamento quando o consideram justo. Os filhos consideram justo obedecer aos pais por eles terem os colocado no mundo e assumido a responsabilidade de criá-los; os fies consideram justo obedecer aos sacerdotes, pois eles representam Deus na terra e se Deus é justo todo que emana dele também o é; os cidadãos obedecem aos governantes por eles terem sido eleitos por um processo eleitoral tido como justo, onde as regras constitucionais e infraconstitucionais foram seguidas fielmente.


Entretanto, a questão da autoridade, com seu binômio mando/obediência, ou do mando, com o seu binômio deves/não deves, ou da justiça, com o seu binômio justo/injusto, nos leva para outro ponto fundamental, a saber: os mecanismos de sanção pertinentes a cada tipo de autoridade. O mecanismo de sanção é definido aqui a partir do binômio: punição/recompensa, tendo como princípio a retribuição. Quem obedece, quem segue os mandamentos, quem é justo deve ser recompensado; mas quem age de forma contrária, quem desobedece, quem não segue os mandamentos, quem é injusto deve ser punido.


O princípio da retribuição, que o direito positivo segue, tem sua origem nos escritos sagrados, sendo considerado um princípio de justiça. Kelsen, em outra obra riquíssima, O que é Justiça, analisa de forma brilhante as diversas concepções de justiça, em especial a justiça retributiva existente no Velho e Novo testamentos. Moisés, no Velho Testamento, referendava o princípio da retribuição nessa fórmula: “Vede, hoje estou colando diante de vós uma benção e uma maldição: uma benção se obedecerdes aos mandamentos de Javé, vosso Deus, que vos dou hoje, e em maldição se não obedecerdes aos mandamentos de Javé, vosso Deus, e se vos desviardes do caminho que vos estou apontando hoje, e correrdes atrás de deuses estranhos que não conheceis” (Deuterônomio 11, 26 ss.). Não obstante Jesus, em muitos momentos no Novo Testamento, rechaçar o princípio da retribuição, em favor do princípio do amor, no momento do juízo final resgata-o: “No final iminentemente desta era, o Messias, o Filho do Homem, ‘mandará seus anjos, e eles tirarão de seu reino todas as causas de pecado e os malfeitores e os atirarão na fornalha ardente; lá elas chorarão e rangerão os dentes. Então os justos brilharão como o sol no reino de seu Pai’ (Mateus 13, 41 s.)”. Kelsen observa argutamente que no sistema de justiça de ambos a punição está em primeiro plano e a recompensa depois, onde “o princípio da retribuição é apresentado também como jus talionis”. 


Retornando aos fatos elencados acima e a minha tese embrionária de que vivenciamos na contemporaneidade nacional uma crise de autoridade nas diversas esferas e não uma crise numa esfera A ou B, analisaremos os mesmos de per si:

a)      O primeiro fato: a enquete se socorreria um policial levemente ferido ou um traficante gravemente ferido em um acidente. É obvio e ululante que se deve socorrer primeiramente uma pessoal que está gravemente ferida! Mas por que escolheram dois atores que estão em lados diametralmente opostos, onde um fiscaliza a lei e o outro a descumpri? Qual o sentido da pergunta? Qual a motivação da pergunta dentro de um contexto onde há uma notória guerra entre policiais e traficantes em todos os pontos do país, em especial no Rio de Janeiro? Bem, o repúdio à resposta dos participantes, que em sua esmagadora maioria preferiu socorrer o traficante, foi de imediato nas redes sociais e em outros espaços, onde os manifestantes se colocaram em prol da polícia. Entretanto, se formos analisar a pergunta sob a ótica da prestação do socorro pura e simples, o que foi colocado em suspensão nas manifestações em prol do socorro à polícia foi uma série de autoridades, ou seja, de mandamentos e deveres (moral, cristão, legal). Num naufrágio as pessoas que são primeiramente socorridas são as crianças, as mulheres e os idosos por uma questão moral; Cristo diz que se deve olhar o amigo e o inimigo da mesma forma, desejando o bem sem olhar a quem (princípio do amor); as leis punem a não prestação do socorro.  Entretanto, se formos analisar desconsiderando a urgência do socorro e focarmos exclusivamente nos atores envolvidos, a autoridade posta em xeque foi à autoridade política-jurídica do Estado, de forma geral, e do sistema de justiça criminal, de forma específica, onde um ator que descumpri a lei é tratado de forma igual a um ator que cumpri a lei (incluindo atores que têm o dever de fiscalizar o cumprimento da lei) ou até mesmo que o primeiro é visto com maior consideração do que o segundo: as considerações feitas por uma determinada deputada gaúcha sobre a conduta de um policial da reserva, que na condição de cidadão, ao trabalhar dirigindo um táxi, se defendeu atirando e matando três assaltantes que atentaram contra a sua vida e do seu patrimônio, alegando que preferiria que uma família estivesse sofrendo (no caso a família do policial ou de um cidadão cumpridor das leis) ao invés de três (no caso das famílias dos malfeitores), demonstram bem essa crise de obediência aos mandamentos estabelecidos pelo Estado por meio da legislação criminal. 

b)      O segundo fato: a morte recorrente de policiais militares no Rio de Janeiro (não somente no Rio é claro) por conta da guerra do tráfico, onde, inclusive, culminou com a queda de um helicóptero da Polícia Militar. Esse fato está relacionado ao anterior, no que tange à crise da autoridade do Estado e do seu sistema de justiça criminal. Mas o que há de se destacar aqui é a própria permissividade do Estado em não punir com severidade aqueles que atentam contra os seus agentes e a sua soberania interna. Observa-se, pelo contrário, um garantismo jurídico desmedido e inconsequente em favor dos infratores, por um lado, e, em detrimento das vítimas, por outro, de forma geral, e dos policiais, de forma específica. O Estado-Legislador torna-se conivente com a quebra da autoridade não sancionando com gravidade o atentado contra sua própria autoridade. Há uma inversão do mecanismo de sanção, o binômio é invertido, tornando-se recompensa/punição, ou seja, as leis buscam garantir mais recompensas do que punições, pois há um abrandamento destas por meio de um famigerado garantismo penal que beneficia os malfeitores. Com isso, o crime passa a ser algo vantajoso ante a pena estabelecida.

c)    O terceiro fato: a prisão, em São Paulo, de algumas dezenas de advogados, inclusive, o vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, por envolvimento com o crime organizado. Nesse episódio lamentável os que possuem o dever de cumprir e fazer cumprir as normas jurídicas atentam gravemente contra a autoridade das normas jurídicas, a quem juraram defender, contrariando também os deveres morais e ético do seu estatuto profissional. Ou seja, os bacharéis em direito desobedeceram aos mandamentos, jurídico e moral. Ademais, por estar incluso entre os malfeitores um bacharel representante dos direitos humanos, reforça ainda mais a pecha de que os direitos humanos no Brasil são para proteger bandidos.

d)      O quarto fato: a queda de braço entre o legislativo nacional e o judiciário, mais especificamente o descumprimento por parte de Renan Calheiros da decisão de afastamento da presidência do Senado emanada do STF. Esse é o episódio mais emblemático e cristalino de desobediência. O que foi colocado em xeque foi o Estado-Juiz, pois o STF representa a mais alta autoridade do poder judiciário nacional. Como se já não fosse pouco a crise de autoridade dentro dos poderes executivo e legislativo, em face de uma série interminável de políticos envolvidos em crime de corrupção e outras infrações, observa-se nesse episódio um atentado ao Estado democrático de direito (registro aqui que tenho minhas dúvidas se realmente podemos falar de Estado democrático de direito na Brasil), pois todos nós aprendemos que ordem de juiz não se discute, mas se cumpri! Pois bem, nesse caso se descumpriu a ordem de um ministro do Supremo e o pior que nada foi feito para o resgate da autoridade, ou seja, a punição à desobediência, preferindo aquela Corte colocar a toga entre as pernas e mantê-lo na condição de presidente, retirando apenas da linha sucessória da presidência, em um caso bem esporádico de ter que assumir (o desobediente senador) o mais alto posto do executivo federal.

Citei esses quatro casos de afronta à autoridade, pois são mais recentes, mas poderia citar tantos outros para defender o meu ponto de vista de que a crise que vivenciamos no Brasil é uma crise de autoridade, onde a desobediência generalizada se tornou regra. Mas como nos tornamos tão desobedientes?  Para responder esta questão tão difícil estabeleço para finaliza duas hipóteses:

1ª hipótese: os mecanismos de sanção no país além de serem frágeis, são também permissivos com a desobediência. A fragilidade dos mecanismos de sanção já é observada no interior da família, onde os pais paulatinamente perderam a autoridade sobre os seus filhos. Isso é um problema seriíssimo, pois é por meio da família que a prole internaliza os diversos mandamentos sociais (deveis/não deveis): filhos que não são punidos com a desobediência dificilmente respeitarão a autoridade dos professores e demais membros da sociedade. No campo moral, a forma habitual de sanção, o constrangimento, foi criminalizado: constranger alguém por comportamento imoral é crime. O direito penal, com suas diversas facetas de garantias para o criminoso contumaz, numa sociedade onde ninguém tem garantia de nada (segurança, saúde, educação, liberdade, etc.), atenua as punições e privilegia as recompensas.

2ª hipótese: paulatinamente observa-se a deslegitimação das diversas formas de potestades, onde as autoridades tradicional, carismática e racional-legal, no sentido weberiano do termo, estão cada vez mais perdendo sua capacidade de dominação. As duas primeiras são de caráter pessoal (autoridades dos pais, sacerdotes, professores, políticos etc.), já a ultima é de caráter impessoal (é a autoridade das normas, dos cargos, das funções etc.).

A fragilidade e a permissividade dos mecanismos de sanção e a deslegitimação das diversas formas de autoridades estão entrelaçadas, provocando, assim, a crise de autoridade que ora vivenciamos e que se não tomarmos providências urgentes e enérgicas para reverter o quadro não teremos mais uma ordem social brasileira, pois a ordem, como o próprio termo sugere, depende da obediência às diversas formas de autoridades existentes na vida social.   


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