Inicio esse breve texto a partir
de quatro fatos que me chamaram a atenção dentro da atual conjuntura nacional.
O primeiro foi à enquete fatídica de um determinado programa de televisão, não
menos fatídico, que perguntou aos participantes se socorreriam um policial
levemente ferido ou um traficante gravemente ferido em um acidente. O segundo
foi à morte recorrente de policiais militares no Rio de Janeiro por conta da
guerra do tráfico, onde, inclusive, culminou com a queda de um helicóptero da
Polícia Militar. O terceiro fato foi à prisão, em São Paulo, de algumas dezenas
de advogados, inclusive, o vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos
Humanos, por envolvimento com o crime organizado. Por fim, à queda de braço
entre o legislativo nacional e o judiciário, mais especificamente entre o
presidente do Senado, Renan Calheiros, e o ministro do Supremo, Marco Aurélio.
Recorrendo a Hannah Arendt, em
sua obra Sobre a Violência, a autoridade
é definida, grosso modo, como uma
forma inquestionável de reconhecimento (legitimidade) daqueles que se pede que
obedeçam. Exemplificando; os filhos devem obedecer aos pais, pois a autoridade
destes é considerada como natural; os fieis devem obediência aos sacerdotes,
pois a autoridade destes é conferida por Deus; os cidadãos devem obedecer aos
governantes, pois a autoridade destes foi conferida pelas normas
constitucionais; os indivíduos devem obedecer aos princípios morais, pois tal
autoridade foi conferida pela tradição, ou seja, pelas gerações passadas; os
indivíduos devem obediência às leis, pois estas foram produzidas pelas
autoridades constituídas pela própria lei para legislar nas diversas esferas (esfera
executiva, esfera legislativa e esfera judiciária). Em fim, deve-se obediência
a uma determinada pessoa, cargo ou instituição, pois foram conferidas
autoridade para exercer determinado poder de mando.
Como se observa acima, a
definição de autoridade estabelece o seguinte binômio: mando/obediência. Numa
relação que envolva autoridade há aquele que manda e aquele que obedece, onde
quem manda prescreve condutas que devem ser seguidas pelos que têm a obrigação
de obedecer, onde tais mandamentos possuem também o seu binômio: deves/não
deves. É claro que quem manda deve possuir legitimidade para o exercício da
autoridade, que, por sua vez, é conferida (a fonte) quer pela natureza, quer
por Deus, quer pelas normas positivas, quer pela tradição etc. Hans Kelsen, em
sua magistral obra Teoria Pura do Direito,
diferencia muito bem o mando que possui
autoridade daquele mando que não possui,
quando cita que um indivíduo obedece ao mandamento de um assaltante não por
este possuir autoridade, mas por recorrer à violência ou ao uso da violência
para exigir obediência, diferentemente do mandamento de um fiscal da receita
que determina o pagamento de um tributo e as pessoas obedecem, pois o mesmo
detém autoridade cuja fonte é a norma jurídica. Com isso, observa-se que a autoridade
não é exercida pela força, mas pelo reconhecimento de quem obedece. Nesse
sentido, há uma questão de justiça que perpassa o exercício da autoridade, pois
as pessoas obedecem a um mandamento quando o consideram justo. Os filhos
consideram justo obedecer aos pais por eles terem os colocado no mundo e
assumido a responsabilidade de criá-los; os fies consideram justo obedecer aos
sacerdotes, pois eles representam Deus na terra e se Deus é justo todo que
emana dele também o é; os cidadãos obedecem aos governantes por eles terem sido
eleitos por um processo eleitoral tido como justo, onde as regras
constitucionais e infraconstitucionais foram seguidas fielmente.
Entretanto, a questão da
autoridade, com seu binômio mando/obediência, ou do mando, com o seu binômio
deves/não deves, ou da justiça, com o seu binômio justo/injusto, nos leva para
outro ponto fundamental, a saber: os mecanismos de sanção pertinentes a cada
tipo de autoridade. O mecanismo de sanção é definido aqui a partir do binômio: punição/recompensa,
tendo como princípio a retribuição. Quem obedece, quem segue os mandamentos,
quem é justo deve ser recompensado; mas quem age de forma contrária, quem
desobedece, quem não segue os mandamentos, quem é injusto deve ser punido.
O princípio da retribuição, que o
direito positivo segue, tem sua origem nos escritos sagrados, sendo considerado
um princípio de justiça. Kelsen, em outra obra riquíssima, O que é Justiça, analisa de forma brilhante as diversas concepções
de justiça, em especial a justiça retributiva existente no Velho e Novo testamentos.
Moisés, no Velho Testamento, referendava o princípio da retribuição nessa
fórmula: “Vede, hoje estou colando diante de vós uma benção e uma maldição: uma
benção se obedecerdes aos mandamentos de Javé, vosso Deus, que vos dou hoje, e
em maldição se não obedecerdes aos mandamentos de Javé, vosso Deus, e se vos desviardes
do caminho que vos estou apontando hoje, e correrdes atrás de deuses estranhos que
não conheceis” (Deuterônomio 11, 26 ss.). Não obstante Jesus, em muitos
momentos no Novo Testamento, rechaçar o princípio da retribuição, em favor do
princípio do amor, no momento do juízo final resgata-o: “No final iminentemente
desta era, o Messias, o Filho do Homem, ‘mandará seus anjos, e eles tirarão de
seu reino todas as causas de pecado e os malfeitores e os atirarão na fornalha
ardente; lá elas chorarão e rangerão os dentes. Então os justos brilharão como
o sol no reino de seu Pai’ (Mateus 13, 41 s.)”. Kelsen observa argutamente que
no sistema de justiça de ambos a punição está em primeiro plano e a recompensa
depois, onde “o princípio da retribuição é apresentado também como jus talionis”.
Retornando aos fatos elencados acima e a minha tese embrionária de que vivenciamos na contemporaneidade nacional uma crise de autoridade nas diversas esferas e não uma crise numa esfera A ou B, analisaremos os mesmos de per si:
Retornando aos fatos elencados acima e a minha tese embrionária de que vivenciamos na contemporaneidade nacional uma crise de autoridade nas diversas esferas e não uma crise numa esfera A ou B, analisaremos os mesmos de per si:
a) O
primeiro fato: a enquete se socorreria um policial levemente ferido ou um
traficante gravemente ferido em um acidente. É obvio e ululante que se deve socorrer
primeiramente uma pessoal que está gravemente ferida! Mas por que escolheram
dois atores que estão em lados diametralmente opostos, onde um fiscaliza a lei
e o outro a descumpri? Qual o sentido da pergunta? Qual a motivação da pergunta
dentro de um contexto onde há uma notória guerra entre policiais e traficantes
em todos os pontos do país, em especial no Rio de Janeiro? Bem, o repúdio à
resposta dos participantes, que em sua esmagadora maioria preferiu socorrer o
traficante, foi de imediato nas redes sociais e em outros espaços, onde os
manifestantes se colocaram em prol da polícia. Entretanto, se formos analisar a
pergunta sob a ótica da prestação do socorro pura e simples, o que foi colocado
em suspensão nas manifestações em prol do socorro à polícia foi uma série de
autoridades, ou seja, de mandamentos e deveres (moral, cristão, legal). Num
naufrágio as pessoas que são primeiramente socorridas são as crianças, as
mulheres e os idosos por uma questão moral; Cristo diz que se deve olhar o
amigo e o inimigo da mesma forma, desejando o bem sem olhar a quem (princípio
do amor); as leis punem a não prestação do socorro. Entretanto, se formos analisar
desconsiderando a urgência do socorro e focarmos exclusivamente nos atores
envolvidos, a autoridade posta em xeque foi à autoridade política-jurídica do
Estado, de forma geral, e do sistema de justiça criminal, de forma específica,
onde um ator que descumpri a lei é tratado de forma igual a um ator que cumpri
a lei (incluindo atores que têm o dever de fiscalizar o cumprimento da lei) ou
até mesmo que o primeiro é visto com maior consideração do que o segundo: as
considerações feitas por uma determinada deputada gaúcha sobre a conduta de um policial
da reserva, que na condição de cidadão, ao trabalhar dirigindo um táxi, se
defendeu atirando e matando três assaltantes que atentaram contra a sua vida e do seu patrimônio, alegando que preferiria que uma família estivesse sofrendo (no
caso a família do policial ou de um cidadão cumpridor das leis) ao invés de
três (no caso das famílias dos malfeitores), demonstram bem essa crise de obediência
aos mandamentos estabelecidos pelo Estado por meio da legislação criminal.
b) O
segundo fato: a morte recorrente de policiais militares no Rio de Janeiro (não
somente no Rio é claro) por conta da guerra do tráfico, onde, inclusive,
culminou com a queda de um helicóptero da Polícia Militar. Esse fato está
relacionado ao anterior, no que tange à crise da autoridade do Estado e do seu
sistema de justiça criminal. Mas o que há de se destacar aqui é a própria
permissividade do Estado em não punir com severidade aqueles que atentam contra
os seus agentes e a sua soberania interna. Observa-se, pelo contrário, um
garantismo jurídico desmedido e inconsequente em favor dos infratores, por um lado,
e, em detrimento das vítimas, por outro, de forma geral, e dos policiais, de
forma específica. O Estado-Legislador torna-se conivente com a quebra da
autoridade não sancionando com gravidade o atentado contra sua própria
autoridade. Há uma inversão do mecanismo de sanção, o binômio é invertido,
tornando-se recompensa/punição, ou seja, as leis buscam garantir mais
recompensas do que punições, pois há um abrandamento destas por meio de um
famigerado garantismo penal que beneficia os malfeitores. Com isso, o crime
passa a ser algo vantajoso ante a pena estabelecida.
c) O terceiro fato: a prisão, em São Paulo, de
algumas dezenas de advogados, inclusive, o vice-presidente do Conselho Estadual
dos Direitos Humanos, por envolvimento com o crime organizado. Nesse episódio
lamentável os que possuem o dever de cumprir e fazer cumprir as normas
jurídicas atentam gravemente contra a autoridade das normas jurídicas, a quem
juraram defender, contrariando também os deveres morais e ético do seu estatuto
profissional. Ou seja, os bacharéis em direito desobedeceram aos mandamentos,
jurídico e moral. Ademais, por estar incluso entre os malfeitores um bacharel
representante dos direitos humanos, reforça ainda mais a pecha de que os
direitos humanos no Brasil são para proteger bandidos.
d) O
quarto fato: a queda de braço entre o legislativo nacional e o judiciário, mais
especificamente o descumprimento por parte de Renan Calheiros da decisão de
afastamento da presidência do Senado emanada do STF. Esse é o episódio mais
emblemático e cristalino de desobediência. O que foi colocado em xeque foi o
Estado-Juiz, pois o STF representa a mais alta autoridade do poder judiciário
nacional. Como se já não fosse pouco a crise de autoridade dentro dos poderes
executivo e legislativo, em face de uma série interminável de políticos
envolvidos em crime de corrupção e outras infrações, observa-se nesse episódio
um atentado ao Estado democrático de direito (registro aqui que tenho minhas
dúvidas se realmente podemos falar de Estado democrático de direito na Brasil),
pois todos nós aprendemos que ordem de juiz não se discute, mas se cumpri! Pois
bem, nesse caso se descumpriu a ordem de um ministro do Supremo e o pior que
nada foi feito para o resgate da autoridade, ou seja, a punição à
desobediência, preferindo aquela Corte colocar a toga entre as pernas e
mantê-lo na condição de presidente, retirando apenas da linha sucessória da
presidência, em um caso bem esporádico de ter que assumir (o desobediente
senador) o mais alto posto do executivo federal.
Citei esses quatro casos de
afronta à autoridade, pois são mais recentes, mas poderia citar tantos outros
para defender o meu ponto de vista de que a crise que vivenciamos no Brasil é
uma crise de autoridade, onde a desobediência generalizada se tornou regra. Mas
como nos tornamos tão desobedientes?
Para responder esta questão tão difícil estabeleço para finaliza duas
hipóteses:
1ª hipótese: os
mecanismos de sanção no país além de serem frágeis, são também permissivos com
a desobediência. A fragilidade dos mecanismos de sanção já é observada no
interior da família, onde os pais paulatinamente perderam a autoridade sobre os
seus filhos. Isso é um problema seriíssimo, pois é por meio da família que a
prole internaliza os diversos mandamentos sociais (deveis/não deveis): filhos
que não são punidos com a desobediência dificilmente respeitarão a autoridade
dos professores e demais membros da sociedade. No campo moral, a forma habitual
de sanção, o constrangimento, foi criminalizado: constranger alguém por
comportamento imoral é crime. O direito penal, com suas diversas facetas de
garantias para o criminoso contumaz, numa sociedade onde ninguém tem garantia
de nada (segurança, saúde, educação, liberdade, etc.), atenua as punições e
privilegia as recompensas.
2ª hipótese: paulatinamente
observa-se a deslegitimação das diversas formas de potestades, onde as autoridades
tradicional, carismática e racional-legal, no sentido weberiano do termo, estão
cada vez mais perdendo sua capacidade de dominação. As duas primeiras são de
caráter pessoal (autoridades dos pais, sacerdotes, professores, políticos
etc.), já a ultima é de caráter impessoal (é a autoridade das normas, dos
cargos, das funções etc.).
A fragilidade e a permissividade
dos mecanismos de sanção e a deslegitimação das diversas formas de autoridades
estão entrelaçadas, provocando, assim, a crise de autoridade que ora
vivenciamos e que se não tomarmos providências urgentes e enérgicas para
reverter o quadro não teremos mais uma ordem social brasileira, pois a ordem,
como o próprio termo sugere, depende da obediência às diversas formas de
autoridades existentes na vida social.
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