domingo, 11 de junho de 2017

A democratização da Justiça brasileira

A reforma do Sistema Judiciário nacional é uma temática que vem se arrastando no país, assim como outras reformas tais como reforma política e reforma tributária. Essa temática é de grande relevância para a consolidação da democracia, pois o acesso à justiça é condição sini qua non para a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Em entrevista à revista Caros Amigos, a jurista e profª Drª Flávia Piovesan, da PUC-SP, falou sobre os problemas e alguns avanços do Judiciário brasileiro para se adequar às exigências de um sistema político-jurídico fundado na concepção do Estado de direito. Destaco abaixo alguns trechos que considerei importante da entrevista, seguindo a ordem estabelecida pela entrevistadora Aray Nabuco.

Perguntada se era possível dizer se vivíamos em um estado de direito ou num estado para poucos, Piovesan iniciou a resposta falando sobre dados oficiais da Secretaria de Reforma do Poder Judiciário demonstrando o nível de desigualdade de acesso à justiça no país: “Da litigância, a maior parte de quem tem acesso à Justiça é União, estados e municípios. Na segunda posição, temos os bancos. E depois, as empresas de telefonia. Isso dá quase 90% daqueles que têm acesso à Justiça” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17). Ou seja, a maioria da população não tem acesso à Justiça.

Esta situação provoca, conforme Piovesan, um distanciamento da população do Poder Judiciário: “na América Latina, em média, entre 70 e 80% da população têm esse sentimento”, bem como “o Judiciário tem a mesma percepção de sentir distância da população”. Isso resulta num “estranhamento reciproco”, onde se torna fundamental “uma Justiça mais acessível e que se quebre esse distanciamento.” Ela destaca ainda como um ponto importante para aumentar o acesso da população à Justiça, o fortalecimento da Defensoria Pública: “No Brasil hoje, dados de 2013 mostram que nós temos ao todo 5.294 defensores públicos. Isso alcança apenas 44% da população, menos da metade” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17).

Perguntado onde ela identificava as deficiências do Judiciário, bem como se a questão da Defensoria era realmente um problema, Piovesan inicia respondendo a segunda pergunta: “É muito pequeno o número de defensores [...]. menos da metade das comarcas brasileiras tem defensores públicos. Isso é um drama para a Justiça.” Outra questão importante destacada é o fortalecimento da litigância no campo dos direitos humanos: “a temática das cotas para afrodescendentes, ou a temática das uniões homoafetivas”. Outros pontos importantes: “democratizar os órgãos do Poder Judiciário” e os “tempos processuais”. Neste último caso, ela destaca as disparidades regionais: na 2ª região de São Paulo, o tempo de execução na esfera trabalhista demanda 120 dias. Já o tempo de execução em Alagoas é de 1.003 dias [...]. Essas oscilações profundas dos tempos processuais no campo regional também comprometem o que eu chamo de ‘impressão de um Poder Judiciário nacional’. Porque há que se ter uma boa governança judicial, com transparência, com responsabilidade” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17), onde ela destaca a importância do Conselho Nacional de Justiça para garantir essa boa governança.

Perguntado sobre a questão da morosidade, dos tempos processuais e sobre prazos, ela diz que com a criação do CNJ “houve uma tentativa de mudança”. Ademais, “O próprio Supremo constatou que 70% do tempo processual é consumido com atos que agregam valor algum ao processo. Os juízes utilizam 11% do tempo processual com decisão, o restante são outras demandas, como atividades burocráticas e tudo mais” . Isso é “uma patologia estrutural do Sistema Judiciário” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17).

Dentro desse contexto, a jurista ressalta a importância do CNJ quando passou a estabelecer metas: “eu acho que o CNJ tem tido uma contribuição extraordinária. Teve essa maior racionalização, de uma Justiça mais eficiente, mais célere, mais desburocratizada”. O aumenta da eficiência torna-se de grande relevância para a democracia: “O Poder Judiciário é um vetor fundamental do Estado democrático de direito”. É ele que “tem a última palavra num Estado democrático de direito”. Para que ele funcione dentro dos padrões democráticos, “o Judiciário tem que ser acessível, tem que ser independente [...] e tem que ter uma resposta eficiente, uma resposta célere” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 18).

Perguntado sobre a possibilidade de identificar alguma origem para que o Judiciário brasileiro tratasse diferentemente os ricos e os pobres, ela responde afirmando que a causa está na desigualdade social. Ao mesmo tempo em que o Brasil é a sexta economia do mundo, é também um dos mais desiguais, ficando na octogésima posição mundial em temos de IDH. Para reduzir as desigualdades do âmbito do acesso à justiça se faz necessário “voltar ao tema das defensorias, da advocacia pro-bônus, que permite que advogados possam doar parte do seu tempo a causas públicas, às clinicas de direitos humanos das universidades, às assessorias jurídicas de centros acadêmicos” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 19).

Perguntado se há juristas que defendam algumas mudanças no Judiciário como, por exemplo, na maneira de indicação para as supremas cortes, ela inicia afirmando que não é “bom que o Executivo tenha esse monopólio da indicação”, e que é também uma defensora do mandato. No primeiro caso, ela defende a adoção de um regime misto: “parte do Supremo sendo indicada pelo Executivo, parte vindo do próprio Judiciário, outra parte indicada pelo Legislativo. Seria um modelo híbrido”. No segundo caso, considera importante o mandato aos moldes das Cortes constitucionais sul-africana, alemã e colombiana. Outa questão importante é “a amplitude das competências do Supremo. Eu sou a máxima defensora de que a jurisdição do Supremo seja concentrada em matéria constitucional e não para julgar, por exemplo, habeas corpus, se transformando em juiz penal” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 19).

Abro um parentese para essa assertiva de Piovesan no que tange à jurisdição do Supremo, pois entendo que o STF vem contribuído e muito para macular a imagem do judiciário brasileiro, não só no julgamento de habeas corpus de diversos infratores notadamente envolvidos em organizações criminosas como foram os casos de Eike Batista e Marcos Valério, mas também em decisões que contrariam a legislação penal e as decisões originadas dos tribunais como foi o caso da aplicação do princípio da insignificância nos casos de furto de celular. Por essas e outras , as ações do STF, por meio das condutas dos seus ministros, vêm criando uma série de embaraços para o Sistema de Justiça Criminal nacional, inclusive colocando em xeque todo o seu aparato repressivo, bem como engendrando um sentimento de antipatia por parte dos cidadãos ante às decisões que não raramente contraria a opinião pública.     
  
Perguntado sobre a judicialização da política, onde se retira muitos casos que poderiam ser resolvidos no âmbito legislativo indo para o Supremo,  Piovesan responde afirmando que vivenciamos hoje no país “uma excessiva demanda do Supremo”. Isso se dá porque “houve certo grau de desilusão, de desencantamento com o Poder Legislativo e com o Poder Executivo. A questão dos homoafetivos [...] era uma questão estagnada no Legislativo, que foi deslocada para o Judiciário. O tema, por exemplo, da antecipação terapêutica do parto, em casos de anencefalia fetal, era outro refém da bancada religiosa e que chegou ao Poder Judiciário” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 20).


Dessas perguntas e resposta, podemos observar, através das palavras de Piovesan, que a reforma do Judiciário é uma questão fundamental para a consolidação da democracia no país, pois com desigualdade de acesso à justiça não se pode falar de democracia. Eliminar os obstáculos econômicos, sociais e culturais, como alerta o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, é de fundamental importância para os propósitos democráticos. Nesse sentido, Piovesan está na mesma linha daquilo que Sousa Santos chama de revolução democrática da justiça, que prega um novo senso comum jurídico que segue três premissas: primeira, “uma crítica ao monopólio estatal e científico do direito”, com uma proposta de uma “concepção forte de pluralismo jurídico e uma concepção política do direito”; segunda, o “questionamento do caráter despolitizado do direito e a sua necessária repolitização”; por fim, ampliação da “compreensão do direito como princípio e instrumento universal da transformação social politicamente legitimada, dando atenção” para o que ele designou de “legalidade cosmopolita ou subalterna”, ou seja, “deslocar o olhar para a prática de grupos e classes socialmente oprimidas que, lutando contra a opressão, a exclusão, a discriminação, a destruição do meio ambiente, recorrem a diferentes formas de direito como instrumento de oposição”.

Para Sousa Santos só é possível uma revolução democrática da justiça com a valorização da diversidade jurídica, ou seja, com a implantação de uma justiça cidadão. Para ele, uma sociologia do sistema judiciário deve abordar o desempenho judicial de rotina ou de massa que corresponde ao trabalho cotidiano dos tribunais.

À guisa de conclusão, as ideias trazidas por Piovesan coadunam, pelo que foi visto acima, em parte com as concepções revolucionárias de Sousa Santos, onde a modificação da estrutura do sistema judiciário moderno se faz necessária e urgente para uma melhor adequação aos anseios democráticos de acesso à justiça aos menos favorecidos econômica, social e culturalmente.

No caso brasileiro isso ainda é mais imperativo, pois o acesso à justiça ainda mantém-se elitista, onde os obstáculos econômicos são evidentes, favorecendo os mais aquinhoados economicamente, pois os custos processuais são elevados para uma parcela significativa da população. Ademais, a escassez de órgãos de assistência jurídica e de defensoria pública cria obstáculos sociais e culturais difíceis de transpor, contribuindo, assim, para o não acesso à justiça dessa camada significativa da população.     


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