A eleição de Bolsonaro, tudo
indica, colocou uma pá de cal nas pretensões dos progressistas, pelo menos
momentaneamente, de se perpetuarem no poder e de prosseguir com o projeto
revolucionário de subversão da ordem moral construída sob os alicerces da
civilização ocidental cristã. É importante deixar claro que essa eleição não
foi somente uma substituição de um governo de esquerda por um governo
antiesquerda (não me refiro a um governo de direita, pois não vejo no Brasil
atual qualquer postura política de direita, quer liberal, quer conservadora),
mas a declaração explícita de uma parcela significativa da população de que já
não suportava mais o relativismo moral e a falta de senso de obscenidade que assolam
a nossa sociedade por conta de uma política deliberada de negação das
tradições, dos costumes, das convenções e de tudo que representa a cultura
superior, os valores superiores e a ordem moral cristã.
Os discursos do então
presidenciável Bolsonaro se direcionavam justamente para uma concepção moral
que traz de volta valores considerados tradicionais, com ênfase na família e na
religião católica. O slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”
demonstra uma dupla preocupação: por um lado, com as questões nacionais,
renegadas pelos progressistas globalistas, submissos aos interesses das
organizações internacionais e multilaterais; e, por outro, com as questões
espirituais, também renegadas pelos progressistas materialistas e ateus em prol
do anticristianismo e de uma concepção imanente de mundo, totalmente
desatrelada da noção de transcendência.
Entretanto, o itinerário que terá
de percorrer o novo governo para reverter às consequências maléficas
ocasionadas pela revolução cultural gramsciana dirigida pelos progressistas
marxistas nessas ultimas quatro décadas será extremamente movediço, pois terá
que transpor justamente a hegemonia criada por eles nos diversos ambientes,
mais notadamente nos ambientes político e cultural. A transposição passa necessariamente,
no meu entender, por uma reconstrução do pensamento conservador, que há muito
foi solapado pelo cientificismo positivista e marxista, respectivamente,
durante a República Velha e a República Nova (o pensamento conservador foi mais
bem formulado no Segundo Reinado (1840-1889), com o ecletismo, o
tradicionalismo e o espiritualismo católico como narra brilhantemente Antonio
Paim em sua obra História das Ideias
Filosóficas no Brasil).
O slogan “Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos” resgata, no nosso entendimento, duas premissas do
conservadorismo: o patriotismo e a religiosidade cristã. Como explica um dos
principais expoentes do conservadorismo inglês atual, o filósofo Roger Scruton,
em sua obra Uma filosofia política:
argumentos para o conservadorismo, “o patriotismo republicano defendido por
Maquiavel, Montesquieu e Mill é uma forma
de lealdade nacional, não uma forma patológica como o nacionalismo, mas um amor
natural pelo país, pelos compatriotas e pela cultura que os une. Os patriotas
estão vinculados ao povo e ao território que são deles por direito; e o patriotismo implica uma tentativa de
transformar esse direito em governo imparcial e em Estado de direito. Esse
direito territorial básico está implícito na própria palavra: pátria é a “terra natal”, o lugar ao
qual pertencemos e ao qual retornaremos, ainda que só em pensamento, no final
de nossa perambulação”. Em suma, a pátria é uma forma de compartilhamento de um
território, de uma história, de um idioma e de uma religião.
No Brasil, o surgimento do amor à
pátria pode ser simbolizado por meio da criação da Guarda Nacional em 1831,
justamente no final do Primeiro Reinado, período este que se dá o movimento
antilusitano em prol do nacionalismo brasileiro. Conforme a historiadora Jeanne
Berrance de Castro, em sua obra A milícia
cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850, “Essa explosão nacionalista
justificará o aparecimento, cinco meses depois, de uma Guarda Nacional cidadã,
de uma milícia cívica”. A Guarda Nacional passou a ser o símbolo da nova nação.
Criada pela Lei de 1831, “tornou-se”, diz Castro, “a principal força auxiliar
da Menoridade e elemento básico na manutenção da integridade nacional”. No seu
artigo primeiro está exposto todo o programa da Guarda Nacional: “defender a
Constituição, a Liberdade, a Independência, e a Integridade do Império; manter
a obediência às Leis, conservar, ou restabelecer a ordem e a tranquilidade
pública, e auxiliar o Exército de linha na defesa das fronteiras e costas”.
Essa pequena lembrança da Guarda Nacional
como símbolo de patriotismo nos permite faze uma ilação e entender a
importância das Polícias Militares brasileiras não só como instituições
responsáveis pela soberania interna e pela manutenção da ordem pública, mas
como símbolos nacionais, símbolos da pátria, responsáveis pela integridade
territorial desde 1825. A população brasileira tem reconhecido tal valor: nos
últimos anos têm crescido a procura por escolas da Polícia Militar em todo o
Brasil. Na Bahia há uma experiência recente de implantação em escolas
municipais, por solicitação de prefeitos, do modelo adotado no Colégio da
Polícia Militar (CPM), onde se incentiva o civismo, o patriotismo e o culto aos
símbolos nacionais, culto este que também está sendo implantado pelo governo
federal nas escolas.
O resgate da religiosidade cristã
significa a reconstrução da comunidade espiritual ou metafísica que foi sendo
sufocada pelo materialismo marxista e pela Teologia da Libertação desde a
segunda metade do século XX. A comunidade espiritual é definida por Richard
M. Weaver, em seu livro As ideias têm
consequências, como sendo aquela “na qual os homens relacionam-se no plano
dos sentimentos e da solidariedade e onde, conscientes de sua singularidade,
conservam uma unidade de um modo que nem sempre é proporcional ao aspecto externo
de sua união”. Ademais, o resgate do culto cristão significa o retorno às
nossas tradições culturais, pois religião e cultura são duas faces da mesma
moeda. T.S. Eliot diz, em seu livro Notas
para a definição de cultura, que há uma encarnação entre cultura e religião
e que suscita a seguinte questão: “se o refinamento da cultura é a causa do
progresso na religião, ou se o progresso na religião é a causa do refinamento
da cultura”. Quando cultura e religião são consideradas dessa forma, evitamos
incorrer, diz ele, em dois erros: “de que a cultura pode ser preservada,
ampliada e desenvolvida na ausência da religião”; e “de que a preservação e a
manutenção da religião não precisam levar em consideração a preservação e a
manutenção da cultura”.
O Brasil, como fruto da obra
civilizacional ocidental, é desde sua origem uma sociedade culturalmente católica,
ou seja, uma comunidade metafísica cristã. Gilberto Freyre, em sua obra Casa-Grande & Senzala, retrata muito
bem essa encarnação da cultura nacional com a religião católica, considerando
esta como o cimento da nossa unidade nacional: “O Brasil formou-se,
despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça. Durante
quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só
importando às autoridades coloniais que fossem de fé ou religião Católica”. Até
um autor marxista como Caio Prado Júnior reconhece a importância da Igreja no
nosso processo de formação cultural e espiritual. Em sua obra Formação do Brasil contemporâneo, ele
diz: “A Igreja sempre honrou no Brasil sua tradição democrática, a maior força
com que contou para a conquista espiritual do Ocidente. O que ocorreu na Europa
medieval se repetiria na colonização do Brasil: a batina se tornaria o refúgio
da inteligência e cultura; e isto porque é sobretudo em tal base que se faria a
seleção para o clero”.
Para além do slogan citado pelo
presidente Bolsonaro, este – juntamente com os ministros das Relações
Exteriores, Ernesto Araújo, e da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez – ressaltou
diversas vezes que o seu governo combateria a ideologia da esquerda disseminada
no diversos setores da sociedade, mais notadamente nas escolas (alvo principal
da revolução cultural). Essa sua ênfase no combate à ideologia nos remete
também ao pensamento conservador e à defesa da política prudencial em
oposição à política ideológica. Segundo um dos expoentes do conservadorismo
norte-americano, Russell Kirk, em sua obra A
política da prudência, a concepção conservadora é aquela que pensa nas
políticas de Estado “como as que intentam preservar a ordem, a justiça e a
liberdade”. Isso difere da política ideológica, pois utiliza a política como
instrumento revolucionário com o fim de transformar a sociedade e até mesmo a
natureza humana. Ressalta-se que o conservadorismo, nas palavras de Kirk, “não
é uma ideologia, mas sim um complexo de pensamento e sentimento, um profundo
apego às coisas permanentes”, e adota os seguintes princípios da política da
prudência:
a) “O
político prudente sabe que ‘utopia’ significa ‘lugar nenhum’; que não se pode
marchar em direção a uma Sião terrena; que a natureza e as instituições humanas
são imperfeitas; que a ‘justiça’ agressiva na política acaba em massacre. A
verdadeira religião é uma disciplina para a alma, não para o Estado”;
b) “O
político prudente tem plena consciência de que o propósito original do Estado é
manter a paz. Isso só pode ser alcançado via a manutenção de um equilíbrio
tolerável entre os grandes interesses da sociedade”;
c) “Os
políticos prudentes, rejeitando a ilusão de uma verdade política absoluta,
diante da qual todo o cidadão deve se curvar, entendem que as estruturas
políticas e econômicas não são meros produtos de uma teoria, a serem erigidos
num dia e demolidos noutro; pelo contrário, instituições sociais se desenvolvem
ao longo dos séculos, como se fossem orgânicas”.
Criou-se no imaginário popular
brasileiro, fruto das falácias dos progressistas, que ser conservador é ser
ditador, fascista, machista e ouras aberrações. A própria concepção trazida por
Kirk de que o Estado deve garantir a ordem, a justiça e a liberdade já é o
suficiente para desmistificar essa relação entre conservador e antidemocrata.
Um dos mais importantes pensadores cristão e conservador do século XX, G.K. Chesterton,
em sua obra magistral, intitulada Ortodoxia,
nos deixa de herança dois brilhantes princípios que expressam a relação entre
conservadorismo e democracia: “Este é o primeiro princípio da democracia: as
coisas essenciais nos homens são as coisas que têm em comum, e não as coisas
particulares. E o segundo princípio é este: que o instinto ou desejo político é
uma dessas coisas comuns”. No primeiro princípio observa-se que Chesterton está
se referindo à participação de todos os cidadãos na administração das coisas
públicas. Em outra parte ele ressalta isso: “Em suma, esta é a fé democrática:
as coisas mais terrivelmente importantes devem ser da alçada do homem comum – o
cortejo amoroso, a educação dos jovens, as leis do Estado. Isso é democracia; e
é nisso que sempre acreditei”. No segundo observa o resgate da ideia
aristotélica de definição do homem como animal político. Os dois princípios
trazem a ideia do homem livre e responsável, ou seja, do homem que faça suas
coisas por conta própria, mesmo que faça errado.
Chesterton também estabelece uma
relação entre democracia e tradição: “Nunca entendi de onde tiraram a ideia de
que a democracia se opõe de alguma forma à tradição”. Para ele, a democracia é
a própria tradição que se estende no tempo, confiando “no consenso das vozes
comuns da humanidade e não em algum evento isolado ou arbitrário”. Para
confirmar a sua premissa, ele traz à baila o exemplo da lenda: “A lenda é
geralmente feita pela maioria da população de uma vila, que é sã. O livro é
geralmente escrito pelo único homem da vila que é louco”. Em seguida traz o
seguinte argumento: “Se damos grande importância à opinião unânime dos homens
comuns quando lidamos com os assuntos cotidianos, não há porque desconsiderá-la
quando lidamos com a história ou as fábulas”. Finalizando seu entendimento
sobre a relação entre democracia e tradição, que o identifica com a concepção
conservadora, Chesterton diz que a tradição “pode ser considerada como uma
extensão do sufrágio eleitoral; o que significa “dar o voto à mais obscura de
todas as classes, nosso ancestrais”. É dessa relação que tira o seu conceito de
“democracia dos mortos”, onde a tradição “rejeita a submissão à oligarquia
arrogante e mesquinha daqueles que por hora perambulam por aí”, bem como rejeita
que os homens “sejam desqualificados pelo acidente da morte”, como fazem, por
exemplo, os democratas que “rejeitam que os homens não possam votar por um
acidente de nascimento”. Com isso, argumenta mais uma vez Chesterton, se a
“democracia diz que não devemos desprezar a opinião de um homem bom, mesmo que
seja nosso lacaio”, a tradição, por sua vez, “nos conclama a não negligenciar a
opinião de um homem bom, mesmo que seja o nosso pai”.
Dentro do atual contexto de crise
moral e política, implantada pelos ideólogos progressistas, o desafio não só do
governo, mas de todos aqueles que votaram em prol do pensamento conservador,
mesmo de forma intuitiva, de resgatar os valores mais elevados, que serviram de
sustentáculos para o desenvolvimento da civilização ocidental cristã, e de
defesa dos costumes, das convenções e da ordem moral. É justamente o resgate do
que outro grande pensador-conservador do século XX, C.S Lewis, em seu livro Cristianismo puro e simples, chamou de
Regra de Comportamento Digno ou Lei da Natureza Humana. Ele cita esta lei no
sentido de contestar o relativismo moral dos progressistas: “se nenhum conjunto
de ideias morais fosse mais verdadeiro ou melhor do que o outro, não haveria
sentido em preferir a moralidade civilizada à moralidade selvagem, ou a
moralidade cristã à moralidade nazista”. Lewis está se referindo a uma moral
objetiva, se contrapondo, assim, a moral subjetiva dos progressistas (no
Brasil, por exemplo, todos se acham no direito de afirmar que possuem uma moral personalizada, elevando à enésima
potência o relativismo moral, que desemboca no relativismo gnoseológico, onde
cada um tem sua verdade). Essa moral objetiva é o padrão que mede morais
distintas no tempo e no espaço, estabelecendo qual está mais próxima do que ele
denominou de Moralidade Real: “se suas ideias morais podem ser mais verdadeiras
e aquelas dos nazistas, menos, deve haver algo – alguma Moralidade Real – de
acordo com a qual sejam verdadeiras”.
Em uma sociedade onde não há
certo e errado, ou onde todo mundo está certo ou todo mundo está errado, onde a
moral é extremante relativizada, não há qualquer possibilidade do uso de uma
faculdade essencialmente humana: a faculdade de julgar. É a Lei de Natureza
Humana, conforme C.S Lewis, que possibilita distinguir o que fazer e o que não
fazer. E o que está por trás dessa lei é justamente Deus e, por conseguinte, a
moral cristã fundada nos mandamentos divinos. É a moral cristã a grande
balizadora dos comportamentos do homem ocidental desde o surgimento de Cristo,
pois como afirma um dos maiores historiadores do cristianismo, Christopher
Dawson, em sua obra Criação do Ocidente:
a religião e a Civilização Medieval, não se pode entender as
características do homem ocidental sem levar em consideração o papel do
cristianismo como sustentáculo da cultura ocidental. É essa moral cristã,
destruída pelos progressistas ateus e religiosos, que os conservadores defendem
e a forma de resgatá-la é por meio da educação.
Dentro dessa possibilidade de retomada
do pensamento conservador no Brasil, em oposição ao pensamento progressista, a
educação torna-se a instituição social mais importante, pois como afirma Allan
Bloom, em seu livro O Declínio da Cultura
Ocidental: da crise da universidade à crise da sociedade, toda a educação
tem uma finalidade moral. Se a educação tem uma finalidade moral e o
conservadorismo não é somente um pensamento político, mas também uma concepção
moral de mundo, então esta concepção só pode ser passada realmente por meio da
educação, Mas não é qualquer forma de educação, mas aquela que possibilite aprender,
ou seja, elevar o nível de entendimento sobre as coisas do mundo e sobre a
própria vida.
Allan Bloom, como educador conservador,
defende a educação liberal (conhecida também como educação clássica) e se opõe
ao relativismo cultural e ao historicismo que se disseminou nas escolas e
universidades norte-americanas a partir da segunda metade do século XX (caso
semelhante ao que ocorreu no Brasil a partir do final do regime militar com a
inclusão do socioconstrutivismo e da famigerada pedagogia marxista de Paulo
Freire): “Negar a possibilidade de conhecer o bem e o mal corresponde a
suprimir a verdadeira abertura [esta acompanha o desejo de saber, ou seja, tem
a consciência da ignorância]. Uma atitude histórica correta levaria a duvidar
da verdade do historicismo (concepção segundo a qual todo o pensamento está
essencialmente correlacionado ao seu próprio tempo e não pode transcendê-lo) e
a tratá-lo como uma peculiaridade da História contemporânea. Na verdade, o
historicismo e o relativismo cultural são meios para evitar que se ponham à
prova os nossos próprios preconceitos e que se indague, por exemplo, se os
homens são efetivamente iguais ou se tal opinião não passa de um preconceito
democrático”. Bloom prossegue: “Os preconceitos, preconceitos fortes,
correspondem a visões de como as coisas são, a vaticínios sobre a ordem do todo
das coisas e, portanto, sobre o caminho para o conhecimento do todo, por meio
de opiniões errôneas a seu respeito. O erro é de fato nosso inimigo, mas só ele
aponta para a verdade e, por conseguinte, merece tratamento respeitoso. A mente
que não tem preconceitos, a princípio está vazia. Só pode ter sido formada por
um método que não tem consciência da dificuldade de reconhecer que um
preconceito é um preconceito”.
As proposições e argumentações de Allan
Bloom sobre a educação norte-americana são extremamente relevantes, pois ele
vivenciou o que nós vivenciamos no Brasil e que a maioria vivencia no mundo
ocidental, a saber: a deterioração da memória e da imaginação dos nossos jovens
por meio de uma educação que eu denomino de genocida. Os métodos dos cientistas
da educação, vinculados à psicopedagogia, simplesmente retiraram a
possibilidade das crianças aprenderem com os contos de fadas ou literaturas
ditas por Mortimer Adler (o maior educador do século XX), de imaginativas ou
ficcionais. Ou seja, retiraram qualquer possibilidade de aprendizagem e, por
conseguinte, de desenvolvimento cognitivo (não é por acaso que estamos há muito
tempo figurando nas últimas colocações no ranking da educação mundial). Os
nossos “gênios” progressistas da educação infantil defenestraram o lobo mau, a
mula sem cabeça, o bicho papão, as fábulas de Monteiro Lobato e outras tantas, alegando,
sem qualquer tipo de fundamentação razoável, que tais literaturas eram nocivas às
crianças.
Para um conservador arguto como
Chesterton, os contos de fadas estão em consonância com a tradição popular.
Para ele há uma ética e uma filosofia nos contos de fada: “Há a grande lição de
a ‘Bela e a Fera’: uma coisa deve ser amada antes de ser amável. Há a terrível
alegoria de a “Bela Adormecida”, que nos narra como a criatura humana foi
abençoada com todos os dons, mas ainda assim foi amaldiçoada pela morte; e como
a própria morte pode, talvez, adormecer”. Ele fala da forma filosófica de
descrever e explicar que estão contidas nos contos de fada: “As únicas palavras
que já me saciaram como uma descrição da Natureza são os termos usados nos
contos de fadas, como ‘feitiço’, ‘encanto’ e ‘magia’. Elas expressam a
arbitrariedade do fato e seu mistério. Uma árvore cresce porque é uma árvore
mágica. A água desce morro abaixo porque é encantada. O sol brilha porque é
encantado”. Essa forma de linguagem, diz ele, “é perfeitamente racional e agnóstico”,
pois é “a única forma de expressar em palavras minhas percepções clara e definida
de que uma coisa é bem distinta da outra; que não há nenhuma conexão lógica
entre voar e botar ovo”.
Chesterton, em sua brilhante e lúcida
análise sobre a importância dos contos de fada, esclarece que as estórias
narradas indicam, grosso modo, que
não se experimenta um prazer sem um sacrifício simbólico (poderíamos também
dizer que não se obtém um direito sem antes cumprir uma obrigação): “O traço
característico do encantamento de uma fada sempre segue esta forma: ‘Você pode
viver em um palácio de ouro e safiras, se (e somente se) não disser a palavra
vaca’; ou ‘Você pode ser feliz para sempre com a filha do Rei, se não lhe
mostrar uma cebola’. A visão está sempre pelo fio de um veto. Todas as coisas
colossais e excitantes dependem de uma coisa pequena que é subtraída. Todas as
coisas selvagens e rodopiantes que são livres dependem de uma única coisa que é
proibida”. Essas mensagens educativas dadas pelos contos de fadas simplesmente
foram condenadas pelos educadores progressistas em prol de uma retórica alienante
que está destruindo a memória e a imaginação das nossas crianças, como ressalta
Anthony Esolen, em seu livro Dez maneiras
de destruir a imaginação do seu filho: “uma memória desenvolvida é um
maravilhoso e terrível depósito de coisas vistas, ouvidas e feitas, e realiza
atividades que nenhuma página de busca de internet
é capaz de realizar. A memória é capaz de evocar de uma só vez coisas
aparentemente desconexas, conformando-as em uma impressão única ou em um novo
pensamento”. Isso os nossos educadores progressistas não querem, preferem, como
salienta Esolen, sufocar a imaginação colocando a memória em xeque através de
duas maneiras: “Podemos encorajar a preguiça, nunca insistindo que os jovens
devam de fato dominar, por exemplo, as regras da multiplicação, ou a localização
de cidades e rios e lagos no globo. Então podemos permitir que o que restou da
memória seja preenchido com lixo”.
A repressão aos contos de fada pelos “educadores”
progressistas engendra outra consequência danosa: a desconexão com a realidade através
de uma suposta proteção. Como diz o meu amigo Bernardo Guimarães Ribeiro, em
seu livro Nadando contra corrente: como a
dificuldade em formar as próprias ideias abre espaço para ideologias
irracionais: “A polêmica envolvendo Lobato [ele se refere à proibição
velada imposta pelos professores às obras de Monteiro Lobato, acusando-as de
racistas] é apenas uma das tantas abordagens realizadas por intelectuais e
burocratas do Estado que, com propósitos de censura camuflada de boas
intenções, acabam sonegando às crianças o acesso a uma literatura de alto nível
e reconhecidamente rica e estimulante. Impedir o acesso, desqualificar ou mesmo
destruir a literatura de Lobato equivale a pretender negar a escravidão com a
demolição de todos os templos, igrejas, prédios, monumentos e todas as obras
maravilhosas realizadas na face da Terra com as mãos dos escravos” (imaginem se
cismarem com Aristóteles por ter sido a favor da escravidão ou por ter
considerado a mulher inferior ao homem?). Ribeiro cita ainda outra consequência
danosa promovida pelos “educadores” progressistas “protetores” de criancinhas: “A
mania exagerada e desmedida de buscar ‘blindar’ a criança de todas as vicissitudes
e frustrações intrínsecas às experiências da vida acaba por degenerar os
próprios princípios protetivos das crianças. A sede exacerbada de proteção
torna-a contraproducente, transformando crianças superprotegidas em adultos
mimados e intolerantes à frustração, ou seja, em pessoas de baixa ou nenhuma
resiliência”. Será coincidência a ida cada vez mais cedo de crianças para
tratamentos psiquiátricos ou de jovens se automutilando nas escolas e dentro de
casa?
Atrelada à politização da educação,
por meio da censura ideológica, vivenciamos também a censura linguística no
campo político, por meio do politicamente correto. Esta, junto com aquela, cria
um cenário totalitário, onde o logos,
que significa discurso, e que faz parte da definição aristotélica de homem como
animal político e falante, está sendo impedido de exercer sua capacidade
reveladora. É justamente na ação e no discurso, diz Hannah Arendt, em seu livro
A condição humana, que “os homens
mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e
assim apresentam-se ao mundo humano”. Como podemos nos revelar ou revelar a
verdade dentro do espectro da ditadura do politicamente correto? É a
pluralidade dos discursos e, por conseguinte, do pensamento que viabiliza a
ação política democrática. Uma democracia sem preconceito não é democracia, é
uma tirania. É justamente contra essa tirania do politicamente correto que o
pensamento conservador se opõe de forma ferrenha. “Vivemos”, diz Kirk, “numa
época em que o significado de antigas palavras, como tantas outras coisas, se
tornou inseguro. ‘As palavras se distendem, /Estalam e muitas vezes se quebram,
sob a carga’, como T.S Eliot (1888-1965) o diz. ‘No princípio era o Verbo’ (Jo
1,1). Hoje em dia, porém, o Verbo está sendo confrontado pela ideologia
gigante, que perverte a palavra falada e escrita”.
Em suma, a temática aqui proposta não
é a oposição entre direita e esquerda (como fiz no artigo Esquerda, Direita, Um, Dois: A Velha Nova Ordem Unida Política),
mas entre conservadores e progressistas, quer sejam estes de esquerda ou de
direita. Como alerta Benjamin Wilker, em seu livro 10 livros que todo conservador deve ler: mais quatro imperdíveis e um
impostor, há uma diferença crucial entre conservadores e liberais no que
tange à vida política e a moral: “Conservadores seguem uma política cautelosa,
porque eles acreditam que o homem não é inteiramente maleável; e acreditam que
a moralidade é objetiva e coloca limites no que os seres humanos podem e devem
fazer” (vimos aqui). Os liberais, de forma contrária, “tendem a acreditar [...]
que a moralidade é relativa, e que o homem é maleável e pode ser legitimamente
sujeito à manipulação política para promover alguma noção inebriante de bem
comum ou agilizar algum projeto ‘progressista’”. Pois bem, dentro dessa
completa barafunda que vivemos, proporcionada pelos ditadores progressistas (no
nosso caso são os da esquerda), a luz no fim do túnel é justamente o resgate do
pensamento conservador, fundada, especialmente, na longa experiência da nossa
espécie, e não em abstrações e sonhos idealizados pelos inconsequentes e fanfarrões
progressistas.
Dequex Araujo Silva Junior
Doutor em Ciências Sociais
Membro do Instituto Brasileiro de Segurança
Pública
Membro fundador do Instituto Antônio
Lacerda
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