segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A influência de Karl Marx no antissemitismo de Hitler e dos Alemães

 



Há no imaginário dos intelectuais de esquerda e dos seus epígonos de que marxismo e nazismo são diametralmente opostos, onde o primeiro, grosso modo, representa o bem e o segundo o mal. Nada é mais distante do que isso! Ambos são farinha do mesmo saco. O historiador inglês Poul Johnson, em sua magistral obra Tempos Modernos: o mundo dos anos 20 aos 80, descreve muito bem a influência de Marx no antissemitismo alemão, bem como as concordâncias ideológicas entre os líderes comunista, nazista e fascista. Ou seja, as teorias do ódio, que a intelectualidade esquerdista insiste em imputar à direita, têm como origem Marx. A ideia paranoica de imputar todos os males da humanidade a uma determinada classe ou grupo (no caso do marxismo ortodoxo é a burguesia) impulsionou outras formas degeneradas de gnose como a de raça, influenciada também, diga-se de passagem, pelo romantismo de Rousseau, pelo evolucionismo de Darwin e pela teosofia de Helena Blavatsky (que por sinal é a guru espiritual dos adeptos da Nova Era, do ecologismo, do feminismo, do satanismo, do globalismo e de uma série de ismo contrários aos postulados cristãos).  

Segundo Johnson, o “antissemitismo moderno teórico deriva-se do marxismo e abrangia uma seleção (por razões de conveniência econômica, política e nacional) de uma parte determinada da burguesia passível de agressão”. Lênin já declarava que não apenas os judeus, mas toda a burguesia deveria ser responsabilizada pelos males da humanidade. “É significativo o fato de que todos os regimes marxistas”, diz Johnson, por se apoiarem em explicações paranoicas do comportamento humano, degenerem mais cedo ou mais tarde, para o antissemitismo”. Em suma, conclui o historiador, “o novo antissemitismo era o desvio desastroso do rateio de responsabilidades individuais com relação à ideia de culpa coletiva”.

A influência do marxismo no antissemitismo alemão se deu, conforme Johnson, por causa de proeminentes teóricos do racismo serem também marxistas como, por exemplo, Ludwig Woltmann, “que transformou a luta de classe marxista numa luta de raça mundial, defendendo o despertar das massas pela oratória e pela propaganda, a fim de mobilizar os alemães na conquista necessária para lhes assegurar a sobrevivência e a proliferação como uma raça”.

Ambos os regimes totalitários, o comunismo-marxista e o nazismo-hitlerista, declaram guerra ao liberalismo e ao capitalismo, sendo os judeus vistos como representantes dos dois. “O totalitarismo de esquerda criou”, diz Johnson, “o totalitarismo da direita, o comunismo e o fascismo eram martelo e bigorna pelos quais o liberalismo foi despedaçado”. Nessa relação de antecedente e consequente, diz o autor, o leninismo gerou o fascismo de Mussolini” e o stalinismo “tornou possível o leviatã nazista”.

Essa relação estreita entre comunismo e nazismo, marxismo e hitlerismo, também foi confirmada por F.A. Hayek, em sua obra O caminho da servidão: "É sem dúvida verdade que os socialistas alemães encontraram apoio, no seu país, em certos aspectos da tradição prussiana; e o parentesco entre prussianismo e socialismo, do qual ambos os lados se glorificam na Alemanha, fortalece nosso principal argumento. Mas seria um erro acreditar que foi o elemento especificamente alemão, e não o elemento socialista, que produziu o totalitarismo. Era com efeito, a preponderância das ideias socialistas, e não o prussianismo, que a Alemanha tinha em comum com a Itália e a Rússia – e foi das massas e não das classes imbuídas da tradição prussiana, e auxiliado pelas massas, que surgiu o nacional-socialismo”.

Em outro trecho da mesma obra, Hayek, ao tratar dos antecedentes marxistas vistos no fascismo e nacional-socialismo, cita alguns observadores proeminentes do período como W.H Chamberlin, Walter Lippmann e Peter Drucker. Este, por exemplo, declara que o “fascismo é o estágio atingindo depois que o comunismo se revela uma ilusão, conforme aconteceu tanto na Rússia stalinista como na Alemanha pré-hitlerista”.    

Hitler considerava-se um socialista “e a essência de seu socialismo”, diz Johnson, “estava na ideia de que todo o indivíduo ou grupo deveria trabalhar, sem hesitação, para a política nacional”, não importando “quem fosse o verdadeiro proprietário de uma fábrica, desde que aqueles que a gerenciavam obedecessem [ao führer]”. Hitler declarou a Hermann Rauchsning (um amigo intelectual revolucionário) que o seu socialismo não estava baseado em nacionalização: “Nosso socialismo atinge camadas muito mais profundas. Não muda a ordem externa das coisas, ordena apenas a relação do homem com o Estado...De que serviriam renda e propriedade? Por que precisaríamos socializar os bancos e as fábricas? Nós estamos socializando o povo”. Me perece que os socialistas atuais, ou seja, os marxistas heréticos estão adotando a versão hitlerista de socialismo (criar um senso comum socialistas, tal como propôs Gramsci).

Johnson declara que um “dos aspectos mais perturbadores do socialismo totalitário, seja leninista ou hitlerista (e ambos os regimes políticos agiam tanto como movimentos em busca do poder quanto como regimes que já o desfrutavam), era a maneira pela qual esses regimes eram movidos: guiavam-se pela Lei de Gresham (no campo econômico significa que uma moeda má tende a expulsar do mercado a moeda boa) aplicada ao campo da moralidade política. Assim, o medo afastou-se dos instintos humanitários e um perverteu o outro, levando-se mutuamente para as profundezas do mal”.

Hitler, seguindo o que aprendeu com Lênin e Stálin, criou, diz Johnson, “um regime de terror em larga escala”, concentrando, assim como Lênin, “o poder na sua vontade”. Hitler também “era um gnóstico e, assim como Lênin, achava que sozinho era o autêntico intérprete da história como a personificação do determinismo proletário”. Ele também, assim como o líder comunista, “só confiava em si mesmo como expoente da vontade da raça do povo alemão”.

Hitler importou o sistema de campo de concentração dos russos. “Os campos soviéticos”, diz Johnson, “constituíam uma série de ilhas territoriais substanciais dentro da União Soviética, cobrindo muitos milhares de milhas quadradas”. Mais tarde, alguns sobreviventes e testemunhas disseram que nos campos soviéticos “bastavam vinte a trinta dias para transformar um homem saudável numa ruína física; e alguns atestavam que essas condições eram planejadas deliberadamente, a fim de se conseguir uma alta de mortalidade. Espancamentos brutais eram administrados pelos guardas e também por criminosos profissionais, a quem eram dadas tarefas de supervisão sobre as massas de ‘politizados’ – tudo isso era imitado pelos nazistas” (Sobre a rotina nos campos de concentração stalinista sugiro a leitura dos Contos de Kolimá (seis volumes), de Varlam Chamálov, que sobreviveu como preso político por quase vinte anos. No volume 4, intitulado Ensaios sobre o mundo do crime, ele descreve a participação dos criminosos profissionais (Blateres) não só na administração do campo, mas na própria cultura do local tal como ocorre nos nossos presídios com as facções criminosas).

O índice de mortalidade nos campos de concentração soviéticos, segundo Jonhson, “atingiu um nível quase inimaginável pelo homem civilizado”. O “total de mortes causadas pela política de Stálin situa-se perto dos dez milhões”. Essa “escala de atrocidades em massa cometidos por Stálin encorajou Hitler, em seus esquemas de guerra, a mudar toda a demografia da Europa Oriental”. Nesse processo de engenharia social, “a ‘solução final’ de Hitler para os judeus teve suas origens não só em sua mente febril [eu diria psicopata], mas também na coletivização do campesinato soviético”.

Diante do exposto, uma pergunta sempre vem a minha mente quando vejo a comparação entre o número de mortos provocado pelos regimes comunista e nazista dentro e fora dos campos de concentração: Por que somente os nazistas foram julgados e punidos pelos seus atos de antissemitismo já que os comunistas cometeram os mesmos crimes?

Essa façanha não só foi fruto de um grande trabalho de desinformação, mas também de um mascaramento por parte da elite intelectual. Os intelectuais que apoiaram o nazismo em seus estágios iniciais (intelectuais estes chamados por Eric Voegelin, em sua obra Hitler e os alemães, de intelectuais de ralé ou de iletrados espirituais) não tiveram muita dificuldade em mudar de lado e apoiar sua coirmã totalitária. A justificativa da mudança foi o argumento do mal menor. Conforme Johnson, os intelectuais “encaravam o nazismo como um perigo muito maior, tanto para o seu próprio sistema como para todas as formas de liberdade”. Eles “acreditavam que o fascismo provavelmente se transformaria no sistema de governo predominante na Europa e talvez do mundo todo” e que “a União Soviética parecia ser a única grande potência totalmente antagônica ao fascismo, pronta a ir à luta se necessário”. Assim, “muitos desses intelectuais de esquerda estavam não só preparados para defender as aparentes virtudes do regime de Stálin como também para justificar sua crueldade manifesta”.

Hayek, em obra citada, ressalta também a adesão de muitos intelectuais de esquerda ao nazismo e ao fascismo, mostrando o alinhamento entre as duas ideologias: “Todos os que têm observado a evolução desses movimentos na Itália ou na Alemanha surpreenderam-se com o número de líderes, começando por Mussolini (sem excluir Laval e Quisling), que a princípio foram socialistas e acabaram se tornando fascistas ou nazistas”. Assim como os líderes, houve esse mesmo intercambio entre os liderados: “A relativa facilidade com que um jovem comunista podia converter-se em nazista ou vice-versa era notória na Alemanha, sobretudo para os propagandistas dos dois partidos. Na década de 1930, muitos professores universitários conheceram estudantes ingleses e norte-americanos que, regressando do continente europeu, não sabiam ao certo se eram comunistas ou nazistas – sabiam apenas que detestavam a civilização liberal do Ocidente”.   

Conforme Johson, “os intelectuais ocidentais sabiam o suficiente sobre a inclemência soviética, daí terem que adotar outros critérios para defendê-la. Lincoln Steffens, por exemplo, deu o tom: ‘A traição ao czar não era um pecado, a traição ao comunismo é”. [Bernard] Shaw argumentou: ‘Não podemos nos dar ao luxo de posar com ares de moralistas, quando o nosso vizinho mais empreendido... humana e judiciosamente liquida um punhado de exploradores e especuladores para tornar o mundo seguro para os homens de bem’. André Malraux argumentou: ‘Assim como a Inquisição não afetou a dignidade fundamental do cristianismo, também os julgamentos de Moscou não diminuíram a dignidade fundamental do comunismo’. Muitos intelectuais, inclusive aqueles que sabiam o que a justiça totalitária significava, defenderam os julgamentos”. Inclusive, a KGB “fazia uso frequente dos panfletos pró-Stálin escritos por intelectuais ocidentais, com o objetivo de quebrar a resistência de seus prisioneiros”.

Essa defesa do regime de Stálin por parte dos intelectuais ocidentais, prossegue Johnson, “os envolveu num processo de autocorrupção; transferiu para eles e, consequentemente, para seus países, ajudados pelos seus escritos, parte da decadência moral inerente ao próprio totalitarismo; em especial, sua negação da responsabilidade individual, seja para o bem, seja para o mal”.

Julien Benda, em sua obra A traição dos intelectuais, faz referência também à adesão dos intelectuais aos regimes totalitários, especialmente ao comunista, declarando que ao aderir a ideologia comunista (e o materialismo dialético) os intelectuais traíram o seu verdadeiro ofício. Essa traição “consiste em que, ao adotarem um sistema político voltado a um objetivo prático, eles são obrigados a adotar valores práticos, os quais, por essa razão, não são intelectuais. O único sistema político que o intelectual pode adotar, permanecendo fiel a si mesmo, é a democracia, porque, com seus valores soberanos de liberdade individual, de justiça e de verdade, ela não é prática”. Em outro trecho conclui: “O intelectual traiu vergonhosamente seu dever quando, no momento dos fascismos triunfantes, aceitou o injusto porque era ‘um fato’; mais, fez-se caudatário das filosofias que mais desprezam a idealidade e o proclamou exatamente porque ele encarnava o que naquele instante era ‘a vontade da história’. A lei do intelectual, quando o universo inteiro ajoelha-se diante do injusto transformado em senhor do mundo, é permanecer de pé e opor-lhe a consciência humana”.

De tudo aqui exposto (utilizei apenas algumas referências) já possibilita verificar que as diferenças entre nazismo, comunismo e fascismo são ínfimas pois todos eles têm em sua essência o marxismo como teoria e cosmovisão norteadoras. Ao não associarem marxismo e nazismo, mais do que isso, ao qualificarem o primeiro como benéfico (pois substituiria o reino da necessidade pelo reino da liberdade e da justiça, conforme sua gnose) e o segundo como maligno, os intelectuais de esquerda permitiram a continuidade do projeto totalitário por todo mundo através do comunismo, especialmente o chines, que adota a estratégia do soft power (poder brando) para implanta suave e disfarçadamente sua revolução cultural marxista (para um melhor entendimento dessa estratégia sugiro o livro Cooperação e conflito nas relações internacionais, de Joseph S. Nye Jr). 

Aqueles que adotaram o argumento do mal menor (não sei de onde eles tiraram essa ideia insana de que o comunismo é menos maléfico que o nazismo) não me parece que se arrependeram pela culpa da proliferação do totalitarismo marxista em tempos atuais, especialmente os intelectuais marxistas da América Latina, integrantes ou não do Foro de São Paulo, integrantes ou simpatizantes dos partidos de esquerda. Provavelmente deve ter ocorrido o que Hannah Arendt disse em seu livro Reponsabilidade e Julgamento: “aqueles que escolhem o mal menor [como argumento] esquecem muito rapidamente que escolhem o mal”.      


sábado, 9 de janeiro de 2021

Criminterrupção: a arma dos membros do STF para assegurar o movimento totalitário

 


O STF, dentro do atual contexto político nacional, vem se constituindo na Polícia das Ideias orwelliana. A Polícia das Ideias na distopia 1984 é responsável pela fiscalização do pensamento através da linguagem (Novilíngua), controlando, assim, toda a realidade por meio da criminalização da opinião. Este é o meio utilizado por membros do STF para reduzir a capacidade de pensar da população sobre as coisas que vivenciamos hoje e que ensejam uma reflexão mais profunda. Ou seja, o que os togados da Suprema Corte estão fazendo é o que George Orwell chamou de "criminterrupção", que “significa a capacidade de estacar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso”. Este “conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Socing [o partido], e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo herético. Em suma, "criminterrupção" significa burrice protetora”. 

Esse papel ora exercido por membros do STF de controlador da realidade através da censura das opiniões divergentes à cosmovisão dominante ("criminterrupção") era de responsabilidade das instituições de ensino, da comunidade artística e da mídia, que desde a década de 1960, passaram a adotar a estratégia gramsciana de criar um novo “senso comum” por meio da dominação psicológica (hegemonia), como bem descreveram, por exemplo: Zuenir Ventura, em 1968: o ano que não terminou; Olavo de Carvalho, em A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci; Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, em A Revolução Gramscista no Ocidente; e, mais recentemente, Flávio Gordon, em A corrupção da inteligência: intelectuais e poder no Brasil. Com a perda atual de legitimidade da intelligentsia universitária, artística e jornalística, os membros do STF tiveram que assumir o protagonismo da revolução cultura, não deixando, assim, que o movimento de natureza totalitária morra.

Não é por demais lembrar que uma das características do regime totalitário é tratar como criminosos e subversivos todos aqueles que divergem da ficção oficial, transformando-os em “inimigos objetivos”. Na caça aos inimigos objetivos, diz Hannah Arendt, em Origens do totalitarismo, “é que o terror se torna o verdadeiro conteúdo dos regimes totalitários”. A definição dos inimigos ideológicos se dá antes da tomada do poder, “de sorte que”, prossegue ela, “não há necessidade de informações policiais para que se estabeleçam categorias de ‘suspeitos’. Assim, os judeus da Alemanha nazista ou os descendentes das antigas classes governantes da União Soviética não estavam realmente sob suspeita de ação hostil alguma; tinham sido declarados inimigos ‘objetivos’ do regime em decorrência da sua ideologia, e isso bastava para serem eliminados”. 

Observa-se na realidade brasileira claramente a seleção feita por membros do STF de “inimigos objetivos”. Os casos dos jornalistas Alan dos Santos e Oswaldo Eustáquio (recentemente preso), e da ex-ativista de esquerda (atualmente em prisão domiciliar), Sara Winter, enquadram-se bem nessa categoria. Eles estão sendo acusados de “crimes possíveis”, que estão associados aos “pensamentos perigosos” expostos pela liberdade de opinião, que para um regime totalitário é inadmissível. Mas dentro do regime totalitário qualquer pessoa pode ser considerado inimigo objetivo, diz Arendt: “todo pensamento que se desvia da linha oficialmente prescrita e permanentemente mutável já é suspeito, não importa o campo de atividade humana em que ocorra”. Desta forma, ninguém está imune à perseguição dos togados do STF.

A inversão da sequência de causa e efeito realizada pela acusação dos “crimes possíveis” nos remete aos romances de Franz Kafka, mais precisamente ao Processo, onde Josef K. acorda com policiais dando-lhe voz de prisão, cujo crime não se sabia do que se tratava, nem mesmo os policiais (qualquer semelhança com o caso do inquérito da fake news não parece ser mera coincidência).  Nesta inversão verifica-se uma culpa que é anterior ao crime ou uma culpa de um crime que ainda não foi tipificado (contrariado o princípio de que não há crime sem uma lei anterior que o defina). Tal como no romance de Kafka, o tribunal não apenas está processando inocentes, mas julgando-os sem deixar que saibam do que estão sendo acusados. É mais do que óbvio que numa situação desta é extremamente difícil uma defesa. Mas, como está demonstrado no referido romance, o propósito de todo o processo não é identificar a culpa de Josef K., mas de mantê-lo sobre controle tal como verifica-se nos processos contra os selecionados acima pelos membros do STF. É a condição de não partícipe na gnose criada pela ideologia vigente, defendida pelo STF, que tornam os indivíduos culpados tal como presenciamos nos romances de Kafka, através da inversão de culpa e punição.

Ao dizer que a ação do STF é em prol da defesa das instituições e da democracia, os seus membros agem, na verdade, em prol do movimento totalitário, criando, assim, uma segunda realidade, ou seja, uma realidade falsa. Esta segunda realidade é criada através do direito produzido pela Suprema Corte (inclusive já mencionei tal situação no meu artigo Imaginação Esquizofrênica publicado neste blog), sendo o tal conjunto de direito entendido como aquilo que é benéfico para o movimento. É evidente que esta segunda realidade construída pelo STF, através da legislação judiciária, busca eliminar a primeira realidade, a realidade verdadeira. É aí que se estabelece a criminalização da opinião como forma de sucumbi-la, contrariando, inclusive, as evidências adquiridas por meio da intuição, ou seja, da percepção imediata de uma verdade presente (os casos analisados no texto Imaginação Esquizofrênica exemplifica bem esta situação).       

Para melhor explicar esta macabra intenção vou recorrer à teoria do conhecimento de Platão, pois este foi o primeiro a estabelecer (pelo menos até onde eu sei) a diferença entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa) ao dizer que o primeiro corresponde ao saber, pois se destina a conhecer o que o ser é, e o segundo à aparência, que fica numa posição intermediária entre o saber e a ignorância. No Capítulo VI, da sua obra A República, há um trecho que deixa mais evidente essa diferença: “Portanto, relativamente à alma, reflete assim: quando ela se fixa num objeto iluminado pela verdade e pelo ser, compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém, quando se fixa num objeto ao qual se misturam as trevas, de alto a baixo, e parece já não ter inteligência”.

Dar-se com essa diferença, o dualismo platônico dos dois mundos: o mundo das ideias (inteligível) e o mundo das aparências (sensível). Ambos constituem duas regiões da realidade, onde cada região é dividida em duas partes, criando, assim, quatro tipos de realidades que correspondem a quatro tipos de conhecimentos: a inteligência, o entendimento, a fé e a suposição. As duas primeiras correspondem ao mundo inteligível e ao conhecimento epistêmico ou científico, já as duas últimas correspondem ao mundo sensível e à doxa ou opinião. Assim, diz Platão, “como a inteligência está para a opinião, está a ciência para a fé e o entendimento para a suposição”.

Está exposta acima a estrutura da realidade platônica, onde ambos os mundos formam uma unidade, ou seja, uma realidade total, que é representada através do mito da caverna, sendo o homem, como diz Julián Marías, em sua obra História da Filosofia, aquele que confere unidade aos dois mundos: “Introduz com ele uma unidade fundamental entre esses mundos. As duas grandes regiões da realidade unificam-se na realidade em virtude da intervenção do homem que lhe faz frente. O mundo visível e o mundo inteligível aparecem classificados pela sua referência a duas possibilidades humanas essenciais, ver e compreender. O homem que primeiramente está na caverna e que depois sai de lá, para encarar a luz, é quem confere unidade aos dois mundos. O mundo total é um mundo duplo que se integra num só, por meio do homem”.

Se a realidade inteligível (ou verdadeira) e a realidade sensível (ou aparente) compõem, na teoria do conhecimento de Platão, a estrutura da realidade, então, eliminar o mundo da doxa, através de atos de censura e de criminalização, significa eliminar também o mundo da episteme e da verdade, pois é através da opinião, expressão imediata de um fato presente, que o homem alcança a verdade (compreensão sobre o fato visto), seguindo, conforme Platão, os degraus do conhecimento, que é iniciada pela suposição, passando pela crença e pelo entendimento, até alcançar a inteligência. Isto é, são as experiências vivenciadas no mundo das aparências que possibilita chegar ao mundo das ideias, ou seja, à realidade verdadeira. 

É importante ressaltar que o mundo das aparências de Platão não é um mundo falso, mas um mundo em que as coisas reais são representações das formas ideais existentes no mundo transcendente da realidade inteligível, separando, assim, as coisas de suas essências. Este aspecto metafísico da gnosiologia de Platão não nos interessa aqui, mas a importância da opinião para ascender à estrutura da realidade inteligível.

Se na teoria do conhecimento de Platão a experiência é uma réplica das ideias, mas necessitando daquela para ativar esta, na ideologia totalitária o pensamento se emancipa da experiência, gerando a si próprio. Ou seja, é justamente a realidade das experiências sensíveis que a ideologia totalitária quer destruir por meio da construção de uma ficção, de uma realidade ficcional (uma segunda realidade). Arendt esclarece essa construção ficcional da seguinte forma: “o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidos e insiste numa realidade ‘mais verdadeira’ que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-la. O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia, por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas instituições educacionais, estabelecidas exclusivamente para esse fim, para treinar os ‘soldados políticos’”. 

No caso brasileiro, todas as universidades estão imbuídas em fornecer este sexto sentido, com o apoio da mídia e da comunidade artística. Mas como estas, como já enfatizei acima, estão passando por uma crise de legitimidade, os membros do STF passaram então a assumir o protagonismo da construção e propagação da segunda realidade, através de diversos dispositivos normativos de controle e punição para todos aqueles que são vistos como “inimigos objetivos”, sendo a criminalização da opinião o principal meio para se alcançar tal objetivo.   

Um outro elemento peculiar de todo o pensamento ideológico, citado por Arendt, e que já nos referimos acima, é que o pensamento ideológico busca emancipar o pensamento da experiência, desmontando, como vimos, a estrutura da realidade: “O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela: isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade”. Esta dedução, segunda ela, “pode ser lógica ou dialética: num caso ou no outro, acarreta um processo de argumentação que, por pensar em termos de processos, supostamente pode compreender o movimento dos processos sobre-humanos, naturais ou históricos”. Esta compreensão é atingida “pelo fato de a mente imitar, lógica ou dialeticamente, as leis dos movimentos ‘cientificamente’ demonstrados, aos quais ela se integra pelo processo de imitação” (este é um exemplo típico da anulação do referente quando da utilização da linguagem, permanecendo apenas o símbolo e o significado como elementos).   

Com a desestruturação da estrutura da realidade, passa a imperar a tirania da lógica (e da mentira), que “começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos”, diz Arendt. Com essa submissão, as pessoas renunciam a sua liberdade de pensamento e de expressão, pois a tirania da lógica é justamente direcionada para que as pessoas jamais comecem a pensar, destruindo toda a relação com a realidade (o referente). Dentro do cenário totalitário, como afiança Arendt: “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)”. 

A construção de uma segunda realidade é uma das características dos movimentos gnósticos e o totalitarismo é um movimento gnóstico. Os gnósticos substituem a experiência cristã por uma variedade de ideologias, que tendem a tomar o lugar das religiões. Entretanto, esta passagem de uma realidade a outra não se faz diretamente, mas por meio de um encantador, diz Eric Voegelin, em suas obras A Nova Ciência da Política e Hitler e os Alemães. Este encantador irá persuadir os demais a seguir a fantasia gerada pela segunda realidade, “uma fantasia concupiscente” (tal como fizera Dom Quixote com Sancho Pança no caso dos moinhos de vento, transformados pelo primeiro em gigantes), que desapontada pode acarretar explosões de raiva, explosão esta que demonstra uma falta radical de contato com a realidade. Ademais, ao estabelecer uma fantasia de concupiscência, mudando a ênfase da realidade para uma falsa imagem da realidade (segunda realidade), os movimentos gnósticos assumem uma postura de consciência revolucionária, criando visões paradisíacas de mundo na terra em um tempo futuro indeterminado, mas que deixa rastros de destruição no tempo presente (como é percebido hoje, pelo menos para aquele que continua na primeira realidade).

O gnosticismo, alerta Voegelin, torna a negação da realidade como uma questão de princípio, mesclando o mundo da realidade com o mundo dos sonhos. Ademais, cria uma confusão mental ao considerar a sua interpretação insana da realidade como moral e as virtudes da sabedoria como imoral. Para os gnósticos quem se recusa a compartilhar desta fantasia é estigmatizado moralmente e tem sua liberdade de pensamento e de expressão tolhidas como fazem os membros do nosso STF. “A corrupção moral e intelectual que se expressa nos somatórios dessas operações mágicas”, ressalta Voegelin, “pode impregnar uma sociedade de atmosferas estranha e fantasmagóricas de um manicômio, como experimentamos na crise ocidental de nossos dias”. 

O sucesso do gnosticismo moderno, com a sua liberalização das forças humanas para a construção da nova civilização, foi de garantir às atividades intramundanas a salvação como prêmio. Assim, como argumentou Voegelin, “Quanto mais fervorosamente todas as energias humanas são empenhadas no grande empreendimento da salvação através da ação imanente no mundo, mais distantes da vida do espírito se colocam os seres humanos engajados na empresa”.

Os objetivos das revoluções gnósticas são “o monopólio da representação existencial”, a “alteração na natureza do homem e a criação de uma sociedade transfigurada”. É a partir do “misticismo gnóstico com relação aos dois mundos [o bom e o mau]” que “emerge o padrão dos governos universais que veio dominar o século XX”, que tem suas expressões máximas no nazismo e no comunismo, ou seja, nos regimes totalitários. Estes regimes são exemplos, ressalta Voegelin, “de tentativas gnósticas de congelar a história num reino eterno e final neste mundo”.

Essa dualidade gnóstica dos dois mundos reforça o nosso entendimento de que eliminação da realidade sensível através da criminalização da opinião destrói toda a estrutura da realidade, pois o mundo visto como mau, análogo àquele das aparências de Platão, é dissociado completamente do mundo visto como bom pelos gnósticos, análogo ao mundo das ideias platônicas, onde entre eles não há qualquer elemento unificador, como há na estrutura realidade de Platão simbolizada através do mito da caverna, pois para a esquizofrenia gnóstica o mundo material é criação de um demiurgo, que é uma emanação inferior de Deus. Ao não estabelecer qualquer conexão do mundo material com o mundo celestial, a realidade sensível fica à mercê dos detentores da gnose (o encantador), cuja missão é transformar este mundo mau em um paraíso.

No atual cenário sociopolítico brasileiro, os detentores da gnose são justamente os membros do STF, que passaram a construir uma segunda realidade e a punir quem se arvora a se manter firme no interior da primeira realidade. A "criminterrupção" ou criminalização da opinião é o meio para impor a tirania da lógica, que elimina qualquer expressão do pensamento livre, estabelecendo também um modelo de pensamento dissociado da experiência, que, como já sinalizamos, destrói toda a estrutura da realidade, viabilizando a “fantasia concupiscente”, mas cujo resultado previsto não é o paraíso, mas o seu oposto.          

Dequex Araújo Silva Junior