O STF, dentro do atual contexto político nacional, vem se constituindo na Polícia das Ideias orwelliana. A Polícia das Ideias na distopia 1984 é responsável pela fiscalização do pensamento através da linguagem (Novilíngua), controlando, assim, toda a realidade por meio da criminalização da opinião. Este é o meio utilizado por membros do STF para reduzir a capacidade de pensar da população sobre as coisas que vivenciamos hoje e que ensejam uma reflexão mais profunda. Ou seja, o que os togados da Suprema Corte estão fazendo é o que George Orwell chamou de "criminterrupção", que “significa a capacidade de estacar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso”. Este “conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Socing [o partido], e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo herético. Em suma, "criminterrupção" significa burrice protetora”.
Esse papel ora exercido por membros do STF de controlador da realidade através da censura das opiniões divergentes à cosmovisão dominante ("criminterrupção") era de responsabilidade das instituições de ensino, da comunidade artística e da mídia, que desde a década de 1960, passaram a adotar a estratégia gramsciana de criar um novo “senso comum” por meio da dominação psicológica (hegemonia), como bem descreveram, por exemplo: Zuenir Ventura, em 1968: o ano que não terminou; Olavo de Carvalho, em A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci; Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, em A Revolução Gramscista no Ocidente; e, mais recentemente, Flávio Gordon, em A corrupção da inteligência: intelectuais e poder no Brasil. Com a perda atual de legitimidade da intelligentsia universitária, artística e jornalística, os membros do STF tiveram que assumir o protagonismo da revolução cultura, não deixando, assim, que o movimento de natureza totalitária morra.
Não
é por demais lembrar que uma das características do regime totalitário é
tratar como criminosos e subversivos todos aqueles que divergem da ficção oficial,
transformando-os em “inimigos
objetivos”. Na caça aos inimigos objetivos, diz Hannah Arendt, em Origens do
totalitarismo, “é que o terror se torna o verdadeiro conteúdo dos regimes
totalitários”. A definição dos inimigos ideológicos se dá antes da
tomada do poder, “de sorte que”, prossegue ela, “não há necessidade de informações
policiais para que se estabeleçam categorias de ‘suspeitos’. Assim, os judeus
da Alemanha nazista ou os descendentes das antigas classes governantes da União
Soviética não estavam realmente sob suspeita de ação hostil alguma; tinham sido
declarados inimigos ‘objetivos’ do regime em decorrência da sua ideologia, e
isso bastava para serem eliminados”.
Observa-se na realidade
brasileira claramente a seleção feita por membros do STF de “inimigos objetivos”. Os
casos dos jornalistas Alan dos Santos e Oswaldo Eustáquio (recentemente preso), e da ex-ativista de
esquerda (atualmente em prisão domiciliar), Sara Winter, enquadram-se bem nessa
categoria. Eles estão sendo acusados de “crimes possíveis”, que estão
associados aos “pensamentos perigosos” expostos pela liberdade de opinião, que
para um regime totalitário é inadmissível. Mas dentro do regime totalitário
qualquer pessoa pode ser considerado inimigo objetivo, diz Arendt: “todo
pensamento que se desvia da linha oficialmente prescrita e permanentemente
mutável já é suspeito, não importa o campo de atividade humana em que ocorra”. Desta forma, ninguém está imune à perseguição dos togados do STF.
A inversão da sequência de causa e efeito realizada pela acusação dos “crimes possíveis” nos remete aos romances de Franz Kafka, mais precisamente ao Processo, onde Josef K. acorda com policiais dando-lhe voz de prisão, cujo crime não se sabia do que se tratava, nem mesmo os policiais (qualquer semelhança com o caso do inquérito da fake news não parece ser mera coincidência). Nesta inversão verifica-se uma culpa que é anterior ao crime ou uma culpa de um crime que ainda não foi tipificado (contrariado o princípio de que não há crime sem uma lei anterior que o defina). Tal como no romance de Kafka, o tribunal não apenas está processando inocentes, mas julgando-os sem deixar que saibam do que estão sendo acusados. É mais do que óbvio que numa situação desta é extremamente difícil uma defesa. Mas, como está demonstrado no referido romance, o propósito de todo o processo não é identificar a culpa de Josef K., mas de mantê-lo sobre controle tal como verifica-se nos processos contra os selecionados acima pelos membros do STF. É a condição de não partícipe na gnose criada pela ideologia vigente, defendida pelo STF, que tornam os indivíduos culpados tal como presenciamos nos romances de Kafka, através da inversão de culpa e punição.
Ao dizer que a ação do STF é em
prol da defesa das instituições e da democracia, os seus membros agem, na
verdade, em prol do movimento totalitário, criando, assim, uma segunda
realidade, ou seja, uma realidade falsa. Esta segunda realidade é criada
através do direito produzido pela Suprema Corte (inclusive já mencionei tal
situação no meu artigo Imaginação Esquizofrênica publicado neste blog),
sendo o tal conjunto de direito entendido como aquilo que é benéfico para o
movimento. É evidente que esta segunda realidade construída pelo STF, através da
legislação judiciária, busca eliminar a primeira realidade, a realidade
verdadeira. É aí que se estabelece a criminalização da opinião como forma de
sucumbi-la, contrariando, inclusive, as evidências adquiridas por meio da intuição, ou seja, da percepção imediata de uma verdade presente (os casos analisados no texto Imaginação Esquizofrênica exemplifica bem esta situação).
Para melhor explicar esta macabra intenção vou recorrer à teoria do conhecimento de Platão, pois este foi o primeiro a estabelecer (pelo menos até onde eu sei) a diferença entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa) ao dizer que o primeiro corresponde ao saber, pois se destina a conhecer o que o ser é, e o segundo à aparência, que fica numa posição intermediária entre o saber e a ignorância. No Capítulo VI, da sua obra A República, há um trecho que deixa mais evidente essa diferença: “Portanto, relativamente à alma, reflete assim: quando ela se fixa num objeto iluminado pela verdade e pelo ser, compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém, quando se fixa num objeto ao qual se misturam as trevas, de alto a baixo, e parece já não ter inteligência”.
Dar-se com essa diferença, o dualismo platônico dos dois mundos: o mundo das ideias (inteligível) e o mundo das aparências (sensível). Ambos constituem duas regiões da realidade, onde cada região é dividida em duas partes, criando, assim, quatro tipos de realidades que correspondem a quatro tipos de conhecimentos: a inteligência, o entendimento, a fé e a suposição. As duas primeiras correspondem ao mundo inteligível e ao conhecimento epistêmico ou científico, já as duas últimas correspondem ao mundo sensível e à doxa ou opinião. Assim, diz Platão, “como a inteligência está para a opinião, está a ciência para a fé e o entendimento para a suposição”.
Está exposta acima a estrutura da realidade platônica, onde ambos os mundos formam uma unidade, ou seja, uma realidade total, que é representada através do mito da caverna, sendo o homem, como diz Julián Marías, em sua obra História da Filosofia, aquele que confere unidade aos dois mundos: “Introduz com ele uma unidade fundamental entre esses mundos. As duas grandes regiões da realidade unificam-se na realidade em virtude da intervenção do homem que lhe faz frente. O mundo visível e o mundo inteligível aparecem classificados pela sua referência a duas possibilidades humanas essenciais, ver e compreender. O homem que primeiramente está na caverna e que depois sai de lá, para encarar a luz, é quem confere unidade aos dois mundos. O mundo total é um mundo duplo que se integra num só, por meio do homem”.
Se a realidade inteligível (ou
verdadeira) e a realidade sensível (ou aparente) compõem, na teoria do
conhecimento de Platão, a estrutura da realidade, então, eliminar o mundo da doxa,
através de atos de censura e de criminalização, significa eliminar também o
mundo da episteme e da verdade, pois é através da opinião, expressão imediata de um fato presente, que o homem alcança
a verdade (compreensão sobre o fato visto), seguindo, conforme Platão, os degraus do conhecimento, que é iniciada
pela suposição, passando pela crença e pelo entendimento, até alcançar a inteligência.
Isto é, são as experiências vivenciadas no mundo das aparências que possibilita chegar ao mundo das ideias, ou seja, à realidade verdadeira.
É importante ressaltar que o
mundo das aparências de Platão não é um mundo falso, mas um mundo em que as
coisas reais são representações das formas ideais existentes no mundo
transcendente da realidade inteligível, separando, assim, as coisas de suas
essências. Este aspecto metafísico da gnosiologia de Platão não nos interessa
aqui, mas a importância da opinião para ascender à estrutura da realidade
inteligível.
Se na teoria do conhecimento de Platão a experiência é uma réplica das ideias, mas necessitando daquela para ativar esta, na ideologia totalitária o pensamento se emancipa da experiência, gerando a si próprio. Ou seja, é justamente a realidade das experiências sensíveis que a ideologia totalitária quer destruir por meio da construção de uma ficção, de uma realidade ficcional (uma segunda realidade). Arendt esclarece essa construção ficcional da seguinte forma: “o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidos e insiste numa realidade ‘mais verdadeira’ que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-la. O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia, por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas instituições educacionais, estabelecidas exclusivamente para esse fim, para treinar os ‘soldados políticos’”.
No caso brasileiro, todas as universidades estão imbuídas em fornecer este sexto sentido, com o apoio da mídia e da comunidade artística. Mas como estas, como já enfatizei acima, estão passando por uma crise de legitimidade, os membros do STF passaram então a assumir o protagonismo da construção e propagação da segunda realidade, através de diversos dispositivos normativos de controle e punição para todos aqueles que são vistos como “inimigos objetivos”, sendo a criminalização da opinião o principal meio para se alcançar tal objetivo.
Um outro elemento peculiar de todo o pensamento ideológico, citado por Arendt, e que já nos referimos acima, é que o pensamento ideológico busca emancipar o pensamento da experiência, desmontando, como vimos, a estrutura da realidade: “O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela: isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade”. Esta dedução, segunda ela, “pode ser lógica ou dialética: num caso ou no outro, acarreta um processo de argumentação que, por pensar em termos de processos, supostamente pode compreender o movimento dos processos sobre-humanos, naturais ou históricos”. Esta compreensão é atingida “pelo fato de a mente imitar, lógica ou dialeticamente, as leis dos movimentos ‘cientificamente’ demonstrados, aos quais ela se integra pelo processo de imitação” (este é um exemplo típico da anulação do referente quando da utilização da linguagem, permanecendo apenas o símbolo e o significado como elementos).
Com a desestruturação da estrutura da realidade, passa a imperar a tirania da lógica (e da mentira), que “começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos”, diz Arendt. Com essa submissão, as pessoas renunciam a sua liberdade de pensamento e de expressão, pois a tirania da lógica é justamente direcionada para que as pessoas jamais comecem a pensar, destruindo toda a relação com a realidade (o referente). Dentro do cenário totalitário, como afiança Arendt: “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)”.
A construção de uma segunda
realidade é uma das características dos movimentos gnósticos e o totalitarismo
é um movimento gnóstico. Os gnósticos substituem a experiência cristã por uma variedade de
ideologias, que tendem a tomar o lugar das religiões. Entretanto, esta passagem
de uma realidade a outra não se faz diretamente, mas por meio de um encantador,
diz Eric Voegelin, em suas obras A Nova Ciência da Política e Hitler e os Alemães. Este
encantador irá persuadir os demais a seguir a fantasia gerada pela segunda
realidade, “uma fantasia concupiscente” (tal como fizera Dom Quixote com Sancho Pança no caso dos moinhos de vento, transformados pelo primeiro em gigantes), que desapontada pode acarretar
explosões de raiva, explosão esta que demonstra uma falta radical de contato
com a realidade. Ademais, ao estabelecer uma fantasia de concupiscência,
mudando a ênfase da realidade para uma falsa imagem da realidade (segunda
realidade), os movimentos gnósticos assumem uma postura de consciência
revolucionária, criando visões paradisíacas de mundo na terra em um tempo
futuro indeterminado, mas que deixa rastros de destruição no tempo presente (como é percebido hoje, pelo menos para aquele que continua na primeira realidade).
O gnosticismo, alerta Voegelin, torna a negação da realidade como uma questão de princípio, mesclando o mundo da realidade com o mundo dos sonhos. Ademais, cria uma confusão mental ao considerar a sua interpretação insana da realidade como moral e as virtudes da sabedoria como imoral. Para os gnósticos quem se recusa a compartilhar desta fantasia é estigmatizado moralmente e tem sua liberdade de pensamento e de expressão tolhidas como fazem os membros do nosso STF. “A corrupção moral e intelectual que se expressa nos somatórios dessas operações mágicas”, ressalta Voegelin, “pode impregnar uma sociedade de atmosferas estranha e fantasmagóricas de um manicômio, como experimentamos na crise ocidental de nossos dias”.
O sucesso do gnosticismo moderno, com
a sua liberalização das forças humanas para a construção da nova civilização,
foi de garantir às atividades intramundanas a salvação como prêmio. Assim, como
argumentou Voegelin, “Quanto mais fervorosamente todas as energias humanas são
empenhadas no grande empreendimento da salvação através da ação imanente no
mundo, mais distantes da vida do espírito se colocam os seres humanos engajados
na empresa”.
Os objetivos das revoluções gnósticas
são “o monopólio da representação existencial”, a “alteração na natureza do
homem e a criação de uma sociedade transfigurada”. É a partir do “misticismo
gnóstico com relação aos dois mundos [o bom e o mau]” que “emerge o padrão dos
governos universais que veio dominar o século XX”, que tem suas
expressões máximas no nazismo e no comunismo, ou seja, nos regimes
totalitários. Estes regimes são exemplos, ressalta Voegelin, “de tentativas
gnósticas de congelar a história num reino eterno e final neste mundo”.
Essa dualidade gnóstica dos dois
mundos reforça o nosso entendimento de que eliminação da realidade sensível
através da criminalização da opinião destrói toda a estrutura da realidade, pois o mundo visto como mau, análogo àquele das aparências de Platão, é dissociado
completamente do mundo visto como bom pelos gnósticos, análogo ao mundo das
ideias platônicas, onde entre eles não há qualquer elemento unificador, como há
na estrutura realidade de Platão simbolizada através do mito da caverna, pois para
a esquizofrenia gnóstica o mundo material é criação de um demiurgo, que é uma
emanação inferior de Deus. Ao não estabelecer qualquer conexão do mundo material com o mundo celestial, a realidade sensível fica à mercê dos detentores da
gnose (o encantador), cuja missão é transformar este mundo mau em um paraíso.
No atual cenário sociopolítico brasileiro,
os detentores da gnose são justamente os membros do STF, que passaram a construir
uma segunda realidade e a punir quem se arvora a se manter firme no interior da
primeira realidade. A "criminterrupção" ou criminalização da opinião é o meio
para impor a tirania da lógica, que elimina qualquer expressão do pensamento
livre, estabelecendo também um modelo de pensamento dissociado da experiência,
que, como já sinalizamos, destrói toda a estrutura da realidade, viabilizando a
“fantasia concupiscente”, mas cujo resultado previsto não é o paraíso, mas o
seu oposto.
Dequex Araújo Silva Junior
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