domingo, 11 de junho de 2017

Uma breve reflexão sobre a questão moral na contemporaneidade

A partir de uma leitura do livro de Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, me pus a refletir sobre a condição de humanidade do homem dentro do atual memento histórico, pois, me parece, que a noção de humanidade desse ente tido como racional carece de uma melhor compreensão hoje. A preocupação com a definição da condição humana do homem data dos primórdios da filosofia, onde a definição mais comum entre os pensadores clássicos é o de animal rationale. Entretanto, no seio da modernidade, essa concepção foi relativizada por três grandes pensadores modernos. Max, Kierkegaard e Nietzsche definiram a condição humana, respectivamente, a partir da sua: força ativa e produtiva; concretude e sofrimento; e, vontade e vontade de poder.


Percebo que em tempos atuais e sombrios tais reflexões estão adormecidas e muitos deixaram de se inclinar para o fato ou para a natureza definidora do homem e de sua condição humana. Não se tem a pretensão aqui de estabelecer uma nova definição de homem e de sua condição humana, mas de regatar um pressuposto que entendo como básico para definir o homem como ser racional, a saber, a sua capacidade de pensar, discusar e agir a partir de princípios moralmente aceitos. É na esteira desse pressuposto que se pode afirmar que toda a conduta humana está sujeita a julgamentos morais e legais. Mas só o homem pode julgar tal conduta (sua e de outrem). Com isso, é a nossa capacidade de julgar (atributo da razão) que nos torna essencialmente humanos, pois no reino natural só o homem julga, só o homem tem a capacidade de distinguir o certo do errado, só o homem tem a capacidade de julgar o outro e a si próprio.

A partir desse pressuposto me vem as seguintes questões: será que pessoas que deixam de exercitar a capacidade de pensar, discusar e agir a partir de princípios moralmente aceitos, o fazem por que deixaram de ser julgadas por tais atos? Se determinadas pessoas perdem tal atributo racional de pensar, discusar e agir eticamente, poderíamos considerá-las como humanas? E as pessoas que também perderam a capacidade de julgar, poderíamos considerá-las como humanas?  

Para a primeira questão, entendo que as pessoas que perderam a capacidade de pensar, discursar e agir eticamente, as perderam porque suas condutas não são julgadas devidamente e, por conseguinte, não são repreendidas (moralmente ou legalmente) proporcionalmente por elas. Para a segunda questão, entendo que as pessoas que deixam de pensar, discursar e agir de forma ética não perdem a sua condição de humano, mas adquire o designativo de malfeitor e  assim devem ser tratadas. Para a terceira questão, entendo que as pessoas que perderam a capacidade de julgar se enquadram na categoria de desumanos, pois não só deixam de exercitar o seu atributo definidor, ou seja, a razão, mas também o sentimento de indignação com o malfeito.

Vou direcionar minha reflexão mais para os que perderam a capacidade de julgar, pois entendo que os malfeitos têm como causa principal a inércia daqueles que deveriam repreender (os impositores morais). Para tanto, vou me apoiar em duas frases. A primeira é uma frase de um poema de David Herbert Lawrence que afirma o seguinte: "Eu nunca vi algo selvagem ter pena de si mesmo, um pássaro cairá morto de um galho sem jamais ter sentido pena de si mesmo!". A segunda frase é do filósofo e jurista Edmund Burke que diz o seguinte: "Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada!"

Trazendo para a nossa temática, a primeira frase me remete à ausência da faculdade de julgar que é comum aos selvagens, mas que é inerente aos homens que exercem a capacidade de pensar, discursar e agir eticamente, pois são estes que temem o julgamento alheio e se culpam quando se desviam das normas. O sentimento de pena, juntamente com outras formas de sentimento, é um atributo humano. Um ser selvagem não possui a faculdade de julgar, pois não detém o entendimento do que é certo ou errado. Não ter pena de si mesmo e nem de outrem é algo comum aos selvagens, mas não aos homens, pelo menos para aqueles que estão imbuídos da condição humana.


A segunda frase também me remete à faculdade de julgar, pois a omissão dos ditos bons indica às pessoas que eles podem pensar, discusar e agir livremente, sem nenhum temor de represálias, sem nenhum constrangimento moral ou legal. Se as pessoas se calam ante um malfeito, ante uma conduta inadequada, o mal se instalará e os malfeitores proliferarão.

Em Responsabilidade e Julgamento, Arendt discorreu de forma brilhante sobre essa questão da perda da capacidade de julgar, onde tal incapacidade permitiu que atos desumanos promovidos pelo regime nazista fossem vistos como normais. Foi na análise da incapacidade de julgar que Arendt refletiu sobre a natureza do mal e desvelou que o não julgamento de um ato imoral leva os perpetradores a não refletirem sobre sua culpa e, por conseguinte, deixam de se arrepender dos seus feitos maléficos. Ou nas palavras da filosofa, “os maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque nunca pensaram na questão, e sem lembrança, nada consegue detê-los”.


É essa incapacidade de pensar que difere o homem, como ser meramente biológico, de sua condição humana, que ela define como pessoa. O mal nesse sentido é cometido por um ser humano que se recusa ser uma pessoa. Ou nas palavras dela, o malfeitor é aquele “que se recusa a pensar por si mesmo no que está fazendo e que, em retrospectiva, também se recusa a pensar sobre o que faz, isto é, a voltar e lembrar o que fez”. A partir desta citação pode se inferir duas coisas: a omissão em julgar os malfeitos está suprimindo a capacidade das pessoas de pensar sobre os seus atos e discursos, gerando, assim, uma  sociedade de malfeitores; e, a permissividade moral e legal que ora vige contribui para a construção de uma sociedade de "pessoas" desprovidas de sentimento moral, pois elas deixaram de pensar e, por conseguinte, de se arrepender de seus malfeitos, pois não são cobradas por eles.

Arendt considera que a incapacidade de julgar estaria relacionada com o colapso moral próprio do período em análise (no caso dela, o período da ascensão dos regimes totalitários), pois sem referências prescritivas e impositivas não há como se preestabelecer padrões de conduta. Essa assertiva, no meu entender, é verdadeira para as gerações que se desabrocham no meio do caos moral, mas para as gerações mais velhas, onde há referências morais anteriores, essa assertiva é, no mínimo, problemática. A incapacidade de julgar das gerações mais velhas, que tiveram padrões de conduta norteadores, se dá, entendo, ou por uma questão de apatia moral, face ao próprio movimento de mudança, ou por permissividade moral, devido aos interesses escusos que os beneficiam. Seguindo esse raciocínio, infiro que a responsabilidade pelos caos moral ora vigente nas sociedades ditas civilizadas é das gerações mais velhas que perderam a capacidade de julgar, quer por apatia moral, quer por permissividade moral.

No Brasil, por exemplo, vivencia-se hoje mudanças profundas no sistema de valores da sociedade. Tais mudanças não podem ser atribuídas simplesmente aos fatores econômicos, políticos e socioculturais, ou seja, não se pode atribuir todas as modificações às questões objetivas, deixando de lado os aspectos subjetivos que inclinam as pessoas para a aceitação ou não de tais modificações. As mudança no sistema de valores foram assistidas passivamente pelas gerações mais velhas (me refiro às gerações nascidas em meados do século XX), que são responsáveis (ou deveriam ser) em transmitir os valores para as gerações mais novas (me refiro às gerações nascidas a partir da última década do século XX) ou pelo menos parte dos valores que ainda podem ser considerados como bons, como virtuosos. Entretanto, o que se observa é justamente o contrário, uma parte significativa dos valores passou a ser vista como anacrônica, antiquada, arcaica, obsoleta etc. Isso fez com que as gerações mais novas passassem a não ter referenciais morais ou estes se tornaram altamente flexíveis, contribuindo, assim, para a formação de uma nova modalidade de juventude transviada, completamente cética no campo moral. Dentro desse cenário, estamos nos direcionado para um tempo onde a linha divisória entre benfeitoria e malfeitoria torna-se indiscernível, indefinível, onde certo e errado perdem o sentido. Ou seja, caminhamos para a constituição de uma sociedade de selvagens, de desumanos, pois seus integrantes estão perdendo a sua condição humana por perderem a faculdade de julgar justamente porque não estão sendo julgados por aqueles que têm a responsabilidade de orientar, de reprimir e de elogiar quando necessário.
        


A democratização da Justiça brasileira

A reforma do Sistema Judiciário nacional é uma temática que vem se arrastando no país, assim como outras reformas tais como reforma política e reforma tributária. Essa temática é de grande relevância para a consolidação da democracia, pois o acesso à justiça é condição sini qua non para a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Em entrevista à revista Caros Amigos, a jurista e profª Drª Flávia Piovesan, da PUC-SP, falou sobre os problemas e alguns avanços do Judiciário brasileiro para se adequar às exigências de um sistema político-jurídico fundado na concepção do Estado de direito. Destaco abaixo alguns trechos que considerei importante da entrevista, seguindo a ordem estabelecida pela entrevistadora Aray Nabuco.

Perguntada se era possível dizer se vivíamos em um estado de direito ou num estado para poucos, Piovesan iniciou a resposta falando sobre dados oficiais da Secretaria de Reforma do Poder Judiciário demonstrando o nível de desigualdade de acesso à justiça no país: “Da litigância, a maior parte de quem tem acesso à Justiça é União, estados e municípios. Na segunda posição, temos os bancos. E depois, as empresas de telefonia. Isso dá quase 90% daqueles que têm acesso à Justiça” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17). Ou seja, a maioria da população não tem acesso à Justiça.

Esta situação provoca, conforme Piovesan, um distanciamento da população do Poder Judiciário: “na América Latina, em média, entre 70 e 80% da população têm esse sentimento”, bem como “o Judiciário tem a mesma percepção de sentir distância da população”. Isso resulta num “estranhamento reciproco”, onde se torna fundamental “uma Justiça mais acessível e que se quebre esse distanciamento.” Ela destaca ainda como um ponto importante para aumentar o acesso da população à Justiça, o fortalecimento da Defensoria Pública: “No Brasil hoje, dados de 2013 mostram que nós temos ao todo 5.294 defensores públicos. Isso alcança apenas 44% da população, menos da metade” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17).

Perguntado onde ela identificava as deficiências do Judiciário, bem como se a questão da Defensoria era realmente um problema, Piovesan inicia respondendo a segunda pergunta: “É muito pequeno o número de defensores [...]. menos da metade das comarcas brasileiras tem defensores públicos. Isso é um drama para a Justiça.” Outra questão importante destacada é o fortalecimento da litigância no campo dos direitos humanos: “a temática das cotas para afrodescendentes, ou a temática das uniões homoafetivas”. Outros pontos importantes: “democratizar os órgãos do Poder Judiciário” e os “tempos processuais”. Neste último caso, ela destaca as disparidades regionais: na 2ª região de São Paulo, o tempo de execução na esfera trabalhista demanda 120 dias. Já o tempo de execução em Alagoas é de 1.003 dias [...]. Essas oscilações profundas dos tempos processuais no campo regional também comprometem o que eu chamo de ‘impressão de um Poder Judiciário nacional’. Porque há que se ter uma boa governança judicial, com transparência, com responsabilidade” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17), onde ela destaca a importância do Conselho Nacional de Justiça para garantir essa boa governança.

Perguntado sobre a questão da morosidade, dos tempos processuais e sobre prazos, ela diz que com a criação do CNJ “houve uma tentativa de mudança”. Ademais, “O próprio Supremo constatou que 70% do tempo processual é consumido com atos que agregam valor algum ao processo. Os juízes utilizam 11% do tempo processual com decisão, o restante são outras demandas, como atividades burocráticas e tudo mais” . Isso é “uma patologia estrutural do Sistema Judiciário” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 17).

Dentro desse contexto, a jurista ressalta a importância do CNJ quando passou a estabelecer metas: “eu acho que o CNJ tem tido uma contribuição extraordinária. Teve essa maior racionalização, de uma Justiça mais eficiente, mais célere, mais desburocratizada”. O aumenta da eficiência torna-se de grande relevância para a democracia: “O Poder Judiciário é um vetor fundamental do Estado democrático de direito”. É ele que “tem a última palavra num Estado democrático de direito”. Para que ele funcione dentro dos padrões democráticos, “o Judiciário tem que ser acessível, tem que ser independente [...] e tem que ter uma resposta eficiente, uma resposta célere” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 18).

Perguntado sobre a possibilidade de identificar alguma origem para que o Judiciário brasileiro tratasse diferentemente os ricos e os pobres, ela responde afirmando que a causa está na desigualdade social. Ao mesmo tempo em que o Brasil é a sexta economia do mundo, é também um dos mais desiguais, ficando na octogésima posição mundial em temos de IDH. Para reduzir as desigualdades do âmbito do acesso à justiça se faz necessário “voltar ao tema das defensorias, da advocacia pro-bônus, que permite que advogados possam doar parte do seu tempo a causas públicas, às clinicas de direitos humanos das universidades, às assessorias jurídicas de centros acadêmicos” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 19).

Perguntado se há juristas que defendam algumas mudanças no Judiciário como, por exemplo, na maneira de indicação para as supremas cortes, ela inicia afirmando que não é “bom que o Executivo tenha esse monopólio da indicação”, e que é também uma defensora do mandato. No primeiro caso, ela defende a adoção de um regime misto: “parte do Supremo sendo indicada pelo Executivo, parte vindo do próprio Judiciário, outra parte indicada pelo Legislativo. Seria um modelo híbrido”. No segundo caso, considera importante o mandato aos moldes das Cortes constitucionais sul-africana, alemã e colombiana. Outa questão importante é “a amplitude das competências do Supremo. Eu sou a máxima defensora de que a jurisdição do Supremo seja concentrada em matéria constitucional e não para julgar, por exemplo, habeas corpus, se transformando em juiz penal” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 19).

Abro um parentese para essa assertiva de Piovesan no que tange à jurisdição do Supremo, pois entendo que o STF vem contribuído e muito para macular a imagem do judiciário brasileiro, não só no julgamento de habeas corpus de diversos infratores notadamente envolvidos em organizações criminosas como foram os casos de Eike Batista e Marcos Valério, mas também em decisões que contrariam a legislação penal e as decisões originadas dos tribunais como foi o caso da aplicação do princípio da insignificância nos casos de furto de celular. Por essas e outras , as ações do STF, por meio das condutas dos seus ministros, vêm criando uma série de embaraços para o Sistema de Justiça Criminal nacional, inclusive colocando em xeque todo o seu aparato repressivo, bem como engendrando um sentimento de antipatia por parte dos cidadãos ante às decisões que não raramente contraria a opinião pública.     
  
Perguntado sobre a judicialização da política, onde se retira muitos casos que poderiam ser resolvidos no âmbito legislativo indo para o Supremo,  Piovesan responde afirmando que vivenciamos hoje no país “uma excessiva demanda do Supremo”. Isso se dá porque “houve certo grau de desilusão, de desencantamento com o Poder Legislativo e com o Poder Executivo. A questão dos homoafetivos [...] era uma questão estagnada no Legislativo, que foi deslocada para o Judiciário. O tema, por exemplo, da antecipação terapêutica do parto, em casos de anencefalia fetal, era outro refém da bancada religiosa e que chegou ao Poder Judiciário” (Caros Amigos ano XVII, nº 69, p. 20).


Dessas perguntas e resposta, podemos observar, através das palavras de Piovesan, que a reforma do Judiciário é uma questão fundamental para a consolidação da democracia no país, pois com desigualdade de acesso à justiça não se pode falar de democracia. Eliminar os obstáculos econômicos, sociais e culturais, como alerta o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, é de fundamental importância para os propósitos democráticos. Nesse sentido, Piovesan está na mesma linha daquilo que Sousa Santos chama de revolução democrática da justiça, que prega um novo senso comum jurídico que segue três premissas: primeira, “uma crítica ao monopólio estatal e científico do direito”, com uma proposta de uma “concepção forte de pluralismo jurídico e uma concepção política do direito”; segunda, o “questionamento do caráter despolitizado do direito e a sua necessária repolitização”; por fim, ampliação da “compreensão do direito como princípio e instrumento universal da transformação social politicamente legitimada, dando atenção” para o que ele designou de “legalidade cosmopolita ou subalterna”, ou seja, “deslocar o olhar para a prática de grupos e classes socialmente oprimidas que, lutando contra a opressão, a exclusão, a discriminação, a destruição do meio ambiente, recorrem a diferentes formas de direito como instrumento de oposição”.

Para Sousa Santos só é possível uma revolução democrática da justiça com a valorização da diversidade jurídica, ou seja, com a implantação de uma justiça cidadão. Para ele, uma sociologia do sistema judiciário deve abordar o desempenho judicial de rotina ou de massa que corresponde ao trabalho cotidiano dos tribunais.

À guisa de conclusão, as ideias trazidas por Piovesan coadunam, pelo que foi visto acima, em parte com as concepções revolucionárias de Sousa Santos, onde a modificação da estrutura do sistema judiciário moderno se faz necessária e urgente para uma melhor adequação aos anseios democráticos de acesso à justiça aos menos favorecidos econômica, social e culturalmente.

No caso brasileiro isso ainda é mais imperativo, pois o acesso à justiça ainda mantém-se elitista, onde os obstáculos econômicos são evidentes, favorecendo os mais aquinhoados economicamente, pois os custos processuais são elevados para uma parcela significativa da população. Ademais, a escassez de órgãos de assistência jurídica e de defensoria pública cria obstáculos sociais e culturais difíceis de transpor, contribuindo, assim, para o não acesso à justiça dessa camada significativa da população.     


Vivenciamos no Brasil um momento de crise? Sem dúvidas! Mas qual?

Inicio esse breve texto a partir de quatro fatos que me chamaram a atenção dentro da atual conjuntura nacional. O primeiro foi à enquete fatídica de um determinado programa de televisão, não menos fatídico, que perguntou aos participantes se socorreriam um policial levemente ferido ou um traficante gravemente ferido em um acidente. O segundo foi à morte recorrente de policiais militares no Rio de Janeiro por conta da guerra do tráfico, onde, inclusive, culminou com a queda de um helicóptero da Polícia Militar. O terceiro fato foi à prisão, em São Paulo, de algumas dezenas de advogados, inclusive, o vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, por envolvimento com o crime organizado. Por fim, à queda de braço entre o legislativo nacional e o judiciário, mais especificamente entre o presidente do Senado, Renan Calheiros, e o ministro do Supremo, Marco Aurélio.  

Esses fatos se conectam, assim entendo, por fazerem parte de uma única crise. Muitos falam de uma crise política, outros de uma crise jurídica, outros de uma crise moral. Estas e muitas outras crises fazem parte de uma única crise, a saber: a crise de autoridade! Ou seja, o que presenciamos no Brasil é uma crise da autoridade, no âmbito geral, e que identificamos nas diversas esferas da vida, de forma específica: crise de autoridade política, jurídica, moral, familiar, religiosa, educacional etc.


Recorrendo a Hannah Arendt, em sua obra Sobre a Violência, a autoridade é definida, grosso modo, como uma forma inquestionável de reconhecimento (legitimidade) daqueles que se pede que obedeçam. Exemplificando; os filhos devem obedecer aos pais, pois a autoridade destes é considerada como natural; os fieis devem obediência aos sacerdotes, pois a autoridade destes é conferida por Deus; os cidadãos devem obedecer aos governantes, pois a autoridade destes foi conferida pelas normas constitucionais; os indivíduos devem obedecer aos princípios morais, pois tal autoridade foi conferida pela tradição, ou seja, pelas gerações passadas; os indivíduos devem obediência às leis, pois estas foram produzidas pelas autoridades constituídas pela própria lei para legislar nas diversas esferas (esfera executiva, esfera legislativa e esfera judiciária). Em fim, deve-se obediência a uma determinada pessoa, cargo ou instituição, pois foram conferidas autoridade para exercer determinado poder de mando.


Como se observa acima, a definição de autoridade estabelece o seguinte binômio: mando/obediência. Numa relação que envolva autoridade há aquele que manda e aquele que obedece, onde quem manda prescreve condutas que devem ser seguidas pelos que têm a obrigação de obedecer, onde tais mandamentos possuem também o seu binômio: deves/não deves. É claro que quem manda deve possuir legitimidade para o exercício da autoridade, que, por sua vez, é conferida (a fonte) quer pela natureza, quer por Deus, quer pelas normas positivas, quer pela tradição etc. Hans Kelsen, em sua magistral obra Teoria Pura do Direito, diferencia muito bem o mando que possui autoridade daquele mando que não possui, quando cita que um indivíduo obedece ao mandamento de um assaltante não por este possuir autoridade, mas por recorrer à violência ou ao uso da violência para exigir obediência, diferentemente do mandamento de um fiscal da receita que determina o pagamento de um tributo e as pessoas obedecem, pois o mesmo detém autoridade cuja fonte é a norma jurídica. Com isso, observa-se que a autoridade não é exercida pela força, mas pelo reconhecimento de quem obedece. Nesse sentido, há uma questão de justiça que perpassa o exercício da autoridade, pois as pessoas obedecem a um mandamento quando o consideram justo. Os filhos consideram justo obedecer aos pais por eles terem os colocado no mundo e assumido a responsabilidade de criá-los; os fies consideram justo obedecer aos sacerdotes, pois eles representam Deus na terra e se Deus é justo todo que emana dele também o é; os cidadãos obedecem aos governantes por eles terem sido eleitos por um processo eleitoral tido como justo, onde as regras constitucionais e infraconstitucionais foram seguidas fielmente.


Entretanto, a questão da autoridade, com seu binômio mando/obediência, ou do mando, com o seu binômio deves/não deves, ou da justiça, com o seu binômio justo/injusto, nos leva para outro ponto fundamental, a saber: os mecanismos de sanção pertinentes a cada tipo de autoridade. O mecanismo de sanção é definido aqui a partir do binômio: punição/recompensa, tendo como princípio a retribuição. Quem obedece, quem segue os mandamentos, quem é justo deve ser recompensado; mas quem age de forma contrária, quem desobedece, quem não segue os mandamentos, quem é injusto deve ser punido.


O princípio da retribuição, que o direito positivo segue, tem sua origem nos escritos sagrados, sendo considerado um princípio de justiça. Kelsen, em outra obra riquíssima, O que é Justiça, analisa de forma brilhante as diversas concepções de justiça, em especial a justiça retributiva existente no Velho e Novo testamentos. Moisés, no Velho Testamento, referendava o princípio da retribuição nessa fórmula: “Vede, hoje estou colando diante de vós uma benção e uma maldição: uma benção se obedecerdes aos mandamentos de Javé, vosso Deus, que vos dou hoje, e em maldição se não obedecerdes aos mandamentos de Javé, vosso Deus, e se vos desviardes do caminho que vos estou apontando hoje, e correrdes atrás de deuses estranhos que não conheceis” (Deuterônomio 11, 26 ss.). Não obstante Jesus, em muitos momentos no Novo Testamento, rechaçar o princípio da retribuição, em favor do princípio do amor, no momento do juízo final resgata-o: “No final iminentemente desta era, o Messias, o Filho do Homem, ‘mandará seus anjos, e eles tirarão de seu reino todas as causas de pecado e os malfeitores e os atirarão na fornalha ardente; lá elas chorarão e rangerão os dentes. Então os justos brilharão como o sol no reino de seu Pai’ (Mateus 13, 41 s.)”. Kelsen observa argutamente que no sistema de justiça de ambos a punição está em primeiro plano e a recompensa depois, onde “o princípio da retribuição é apresentado também como jus talionis”. 


Retornando aos fatos elencados acima e a minha tese embrionária de que vivenciamos na contemporaneidade nacional uma crise de autoridade nas diversas esferas e não uma crise numa esfera A ou B, analisaremos os mesmos de per si:

a)      O primeiro fato: a enquete se socorreria um policial levemente ferido ou um traficante gravemente ferido em um acidente. É obvio e ululante que se deve socorrer primeiramente uma pessoal que está gravemente ferida! Mas por que escolheram dois atores que estão em lados diametralmente opostos, onde um fiscaliza a lei e o outro a descumpri? Qual o sentido da pergunta? Qual a motivação da pergunta dentro de um contexto onde há uma notória guerra entre policiais e traficantes em todos os pontos do país, em especial no Rio de Janeiro? Bem, o repúdio à resposta dos participantes, que em sua esmagadora maioria preferiu socorrer o traficante, foi de imediato nas redes sociais e em outros espaços, onde os manifestantes se colocaram em prol da polícia. Entretanto, se formos analisar a pergunta sob a ótica da prestação do socorro pura e simples, o que foi colocado em suspensão nas manifestações em prol do socorro à polícia foi uma série de autoridades, ou seja, de mandamentos e deveres (moral, cristão, legal). Num naufrágio as pessoas que são primeiramente socorridas são as crianças, as mulheres e os idosos por uma questão moral; Cristo diz que se deve olhar o amigo e o inimigo da mesma forma, desejando o bem sem olhar a quem (princípio do amor); as leis punem a não prestação do socorro.  Entretanto, se formos analisar desconsiderando a urgência do socorro e focarmos exclusivamente nos atores envolvidos, a autoridade posta em xeque foi à autoridade política-jurídica do Estado, de forma geral, e do sistema de justiça criminal, de forma específica, onde um ator que descumpri a lei é tratado de forma igual a um ator que cumpri a lei (incluindo atores que têm o dever de fiscalizar o cumprimento da lei) ou até mesmo que o primeiro é visto com maior consideração do que o segundo: as considerações feitas por uma determinada deputada gaúcha sobre a conduta de um policial da reserva, que na condição de cidadão, ao trabalhar dirigindo um táxi, se defendeu atirando e matando três assaltantes que atentaram contra a sua vida e do seu patrimônio, alegando que preferiria que uma família estivesse sofrendo (no caso a família do policial ou de um cidadão cumpridor das leis) ao invés de três (no caso das famílias dos malfeitores), demonstram bem essa crise de obediência aos mandamentos estabelecidos pelo Estado por meio da legislação criminal. 

b)      O segundo fato: a morte recorrente de policiais militares no Rio de Janeiro (não somente no Rio é claro) por conta da guerra do tráfico, onde, inclusive, culminou com a queda de um helicóptero da Polícia Militar. Esse fato está relacionado ao anterior, no que tange à crise da autoridade do Estado e do seu sistema de justiça criminal. Mas o que há de se destacar aqui é a própria permissividade do Estado em não punir com severidade aqueles que atentam contra os seus agentes e a sua soberania interna. Observa-se, pelo contrário, um garantismo jurídico desmedido e inconsequente em favor dos infratores, por um lado, e, em detrimento das vítimas, por outro, de forma geral, e dos policiais, de forma específica. O Estado-Legislador torna-se conivente com a quebra da autoridade não sancionando com gravidade o atentado contra sua própria autoridade. Há uma inversão do mecanismo de sanção, o binômio é invertido, tornando-se recompensa/punição, ou seja, as leis buscam garantir mais recompensas do que punições, pois há um abrandamento destas por meio de um famigerado garantismo penal que beneficia os malfeitores. Com isso, o crime passa a ser algo vantajoso ante a pena estabelecida.

c)    O terceiro fato: a prisão, em São Paulo, de algumas dezenas de advogados, inclusive, o vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, por envolvimento com o crime organizado. Nesse episódio lamentável os que possuem o dever de cumprir e fazer cumprir as normas jurídicas atentam gravemente contra a autoridade das normas jurídicas, a quem juraram defender, contrariando também os deveres morais e ético do seu estatuto profissional. Ou seja, os bacharéis em direito desobedeceram aos mandamentos, jurídico e moral. Ademais, por estar incluso entre os malfeitores um bacharel representante dos direitos humanos, reforça ainda mais a pecha de que os direitos humanos no Brasil são para proteger bandidos.

d)      O quarto fato: a queda de braço entre o legislativo nacional e o judiciário, mais especificamente o descumprimento por parte de Renan Calheiros da decisão de afastamento da presidência do Senado emanada do STF. Esse é o episódio mais emblemático e cristalino de desobediência. O que foi colocado em xeque foi o Estado-Juiz, pois o STF representa a mais alta autoridade do poder judiciário nacional. Como se já não fosse pouco a crise de autoridade dentro dos poderes executivo e legislativo, em face de uma série interminável de políticos envolvidos em crime de corrupção e outras infrações, observa-se nesse episódio um atentado ao Estado democrático de direito (registro aqui que tenho minhas dúvidas se realmente podemos falar de Estado democrático de direito na Brasil), pois todos nós aprendemos que ordem de juiz não se discute, mas se cumpri! Pois bem, nesse caso se descumpriu a ordem de um ministro do Supremo e o pior que nada foi feito para o resgate da autoridade, ou seja, a punição à desobediência, preferindo aquela Corte colocar a toga entre as pernas e mantê-lo na condição de presidente, retirando apenas da linha sucessória da presidência, em um caso bem esporádico de ter que assumir (o desobediente senador) o mais alto posto do executivo federal.

Citei esses quatro casos de afronta à autoridade, pois são mais recentes, mas poderia citar tantos outros para defender o meu ponto de vista de que a crise que vivenciamos no Brasil é uma crise de autoridade, onde a desobediência generalizada se tornou regra. Mas como nos tornamos tão desobedientes?  Para responder esta questão tão difícil estabeleço para finaliza duas hipóteses:

1ª hipótese: os mecanismos de sanção no país além de serem frágeis, são também permissivos com a desobediência. A fragilidade dos mecanismos de sanção já é observada no interior da família, onde os pais paulatinamente perderam a autoridade sobre os seus filhos. Isso é um problema seriíssimo, pois é por meio da família que a prole internaliza os diversos mandamentos sociais (deveis/não deveis): filhos que não são punidos com a desobediência dificilmente respeitarão a autoridade dos professores e demais membros da sociedade. No campo moral, a forma habitual de sanção, o constrangimento, foi criminalizado: constranger alguém por comportamento imoral é crime. O direito penal, com suas diversas facetas de garantias para o criminoso contumaz, numa sociedade onde ninguém tem garantia de nada (segurança, saúde, educação, liberdade, etc.), atenua as punições e privilegia as recompensas.

2ª hipótese: paulatinamente observa-se a deslegitimação das diversas formas de potestades, onde as autoridades tradicional, carismática e racional-legal, no sentido weberiano do termo, estão cada vez mais perdendo sua capacidade de dominação. As duas primeiras são de caráter pessoal (autoridades dos pais, sacerdotes, professores, políticos etc.), já a ultima é de caráter impessoal (é a autoridade das normas, dos cargos, das funções etc.).

A fragilidade e a permissividade dos mecanismos de sanção e a deslegitimação das diversas formas de autoridades estão entrelaçadas, provocando, assim, a crise de autoridade que ora vivenciamos e que se não tomarmos providências urgentes e enérgicas para reverter o quadro não teremos mais uma ordem social brasileira, pois a ordem, como o próprio termo sugere, depende da obediência às diversas formas de autoridades existentes na vida social.