Na terça feira (24/10), o Senado
decidiu, após passagem de bola do STF, a permanência do mandato do senador
Aécio Neves após afastamento imposto pela Primeira Turma do STF por motivo de
denuncias de envolvimento no caso do grupo JBS, mais especificamente pelos
crimes de corrupção passiva e obstrução da justiça.
O senador recorreu da decisão da Primeira
Turma do STF, que o afastou de sua função parlamentar, bem como limitou sua
livre circulação decidindo pelo recolhimento do mesmo em sua residência no
período noturno. A decisão da Primeira Turma gerou a seguinte polêmica: quem
decide sobre o afastamento de um parlamentar de suas funções quando há denuncia
de envolvimento em ato ilícito? O Legislativo ou o Judiciário?
Não me parece que seja um caso
controverso, pois quando há um ato de ilegalidade a competência para julgar e
sentenciar é da instância jurídica, ou seja, do sistema jurídico. Ademais,
quando já há uma decisão do próprio STF afastando um membro político de suas
funções, como é o caso aqui tratado, o recurso deve ser analisado pela instância
jurídica, pois são os juízes que julgam e aplicam leis. Pois bem, os membros do
STF transformaram esse caso em um caso controverso!
Em uma sessão de julgamento (11/10), por
6 votos a 5, os ministros do STF decidiram que a competência para julgar o
recurso interposto pelo senador Aécio era dos seus pares. Ou seja, o STF se
declarou incompetente para decidir matéria de sua competência. O resultado não
poderia ser diferente: os parlamentares descumpriram uma decisão judicial
imposta pela Primeira Turma do STF anulando o afastamento e liberando da restrição
de liberdade!
A condição moral do sistema politico
nacional há muito é questionada, principalmente nos últimos anos com as inúmeras
denuncias de envolvimento de uma parcela significativa do corpo político em crimes
de corrupção e de participação em organizações criminosas. Entretanto, o que se
observa na decisão dos membros do STF no caso do senador Aécio Neves é uma
completa “lavagem de mão”. Isso compromete e muito o sistema jurídico, que
passa a ser visto, muitas vezes, como conivente com a imoralidade e a ilegalidade
dentro do seio político. Dentro desse contexto, como fica a situação do Estado
Democrático de Direito, que depende da autonomia dos sistemas (Executivo, Legislativo
e Judiciário) para o seu perfeito funcionamento?
Para dar uma resposta à questão acima
posta, vou tomar como referencia de análise a concepção sistêmica de Estado
Democrático de Direito de Niklas Luhmann. Este declara, em sua obra O direito da sociedade, que o Estado
Democrático de Direito surge com a diferenciação entre o sistema jurídico e o
sistema político por meio do processo de modernização, estabelecendo a
autonomia de ambos, bem como instituiu um tipo específico de relacionamento
entre os sistemas. Com isso, o sistema jurídico passou a se reproduzir a partir
do código binário lícito/ilícito
e o sistema político através do código binário poder/não poder (governo/oposição);
os sistemas mentem uma relação de interdependência, onde as decisões políticas
passam a ser submetidas ao controle jurídico, bem como o direito passa a
depender da legislação controlada e deliberada pelo poder político.
A relação entre o sistema jurídico e o
sistema político, entretanto, não se dá de forma direta. A Constituição funciona
como mecanismo de articulação entre os dois sistemas, ou seja, age como acoplamento
estrutural entre os dois sistemas e como um mecanismo de interpretação
permanente entre a política e o direito, bem como um mecanismo de filtro de
determinados ruídos intersistêmicos que podem prejudicar a comunicação contínua
e recíproca entre ambos. A Constituição
funciona também como um mecanismo interno de auto-reprodução de cada sistema,
onde no: sistema jurídico, estabelece uma hierarquização interna das leis
através da validade supralegal do direito constitucional, a partir do código
binário constitucional/inconstitucional, que corta de forma transversal o código legal/ilegal,
limitando-o; e, sistema político, viabiliza o ingresso do código lícito/ilícito
como segundo código da política, que possibilita procedimentos eleitorais
democráticos, ao impedir, assim, que o sistema seja manipulado por interesses
particularistas, assim como age como protetora dos efeitos expansivos e
destrutivos da própria autonomia do sistema.
Essa descrição luhmanniana da formação
do Estado Democrático de Direito se refere, grosso
modo, à modernidade central, que caracterizou os países desenvolvidos, mas
não corresponde ao que Marcelo Neves denominou em muitos dos seus trabalhos de
modernidade periférica, onde o Brasil está inserido. Na modernidade periférica,
diferentemente da modernidade central, a experiência jurídico-política demonstra
uma “insuficiente autonomia do direito e deficiente realização do Estado de
direito”.
Para compreender melhor essa discussão
trazida por Neves, se faz necessário entender como na Teoria dos Sistemas de
Luhmann é definido o sistema jurídico. Está posto no seu livro citado acima que
“o sistema jurídico é um subsistema do sistema social”. Por ser um
sistema-parte da sociedade, o modo de operação que o sistema jurídico utiliza é
a comunicação jurídica. Isso significa, “que o sistema jurídico, de maneira muito
peculiar, precisa marcar tudo o que tem de ser tratado como comunicação
jurídica no sistema”.
Na teoria luhmanniana todo sistema é
entendido como autopoiético e operativamente fechado, logo o sistema jurídico
tem uma estrutura autodeterminada, onde “Somente o próprio direito pode dizer o
que é direito”. Com isso, “o sistema do direito opera de maneira normativamente fechada e ao mesmo tempo cognitivamente aberta”. O “fechamento normativo
consiste no contexto de auto-observação do sistema segundo o esquema legal/ilegal”,
e a abertura cognitiva “depende diretamente do fechamento normativo do sistema,
e ela só poderá adquirir caráter mais distintivo e específico caso os critérios
de relevância para diferentes circunstâncias estejam no próprio sistema”.
Feito esse esclarecimento, retornamos a Neves
com sua descrição do sistema jurídico nacional e sua distinção com relação ao
modelo luhmanniano referente à modernidade central. Segundo ele, há interferências
particularistas dos códigos político e econômico no âmbito jurídico,
dificultando a construção da identidade do sistema jurídico. Na linguagem da teoria
dos sistemas autopoiéticos de Luhmann, onde autopoiesis significa autonomia do
sistema ante o seu ambiente, no caso do sistema jurídico brasileiro há,
conforme Neves, uma situação de alopoiese do direito. Isso significa que o
sistema jurídico não tem aptidão, por meio do seu código (lícito-ilícito), de filtrar
(fechamento operativo) as influências oriundas dos sistemas político e
econômico, onde os referidos códigos extrajurídicos agem de forma
autodestrutiva e heterodestrutiva. Isso ocorre pela insuficiência do fechamento
operativo, que cria um problema à construção da identidade do sistema jurídico,
que, grosso modo, se verifica no
plano da estrutura dos textos normativos. Por conta dessa destruição do
processo de concretização jurídica, por causa da interferência do sistema
político, alerta Neves, em seu artigo Luhmann,
Habermas e o Estado de Direito, “não se constrói, em ampla medida,
congruente generalização de expectativas normativas a parti dos textos
constitucionais e legais”, resultando “que a própria distinção entre lícito e
ilícito é socialmente obnubilada, seja por falta de institucionalização
(consenso) ou de identificação do sentido das normas”.
Sobre a interferência do código do
sistema político no sistema jurídico, Luhmann afirmou na obra já citada que “No
sistema do direito, um ato de arbitrariedade sustentado por uma ‘afirmação
autoritária’ do sistema político seria reconhecível como ruptura do direito”. Com
isso, “Um sistema jurídico que é frequentemente exposto a tal interferência num
amplo espectro de questões [...] opera num estado de corrupção. Por meio de
suas normas, o sistema reconhece não ser capaz de resistir à pressão da
política. Ele se mantém simulando legalidade; não renuncia a normas, mas
mediatiza o código lícito/ilícito atendendo uma distinção por meio de um valor
de rejeição [...] que permite a subordinação oportunista a elites capazes de se
impor”. Desta forma, “o sistema do direito é percebido externamente como mero
instrumento de poder”.
No episódio do senador Aécio não parece
incongruente considerar que o STF, representante maior do sistema jurídico
nacional, não opera normativamente fechado, expondo-se às interferências externas
do sistema político. Em uma das sessões da turma do STF após o fato envolvendo
Aércio, o ministro Barroso acusou o seu par, o ministro Gilmar Mendes, de ser
conivente com o crime de colarinho branco, onde este, por sua vez, acusou
aquele de ter liberado o então ministro José Dirceu no caso do mensalão. Ou
seja, não há mais diferença entre uma sessão parlamentar e uma sessão de
julgamento do STF, em ambos observa-se conflitos “ideológicos”, ou melhor, de
interesses quase sempre escusos em detrimento da aplicação da lei. Se no caso
do parlamento isso é normal, no caso do STF isso é totalmente descabido, pois
se imagina, dentro de uma expectativa normativa, que o sistema jurídico deva
adotar, por meio dos seus integrantes (sistemas psíquicos), uma postura neutra
axiologicamente.
Dentro desse contexto, não se pode ter
expectativas normativas com relação à repressão ao crime organizado e à
corrupção instalados no sistema político nacional, pois os indicativos de
fragilidade do sistema jurídico, principalmente por conta da interferência
sistêmica do código político (poder/não poder), nos leva a crer que os atores
políticos continuarão (de forma impune) a desconsiderar o código legal/ilegal
como segundo código da política, criando, assim, um entrave para o amadurecimento
do Estado democrático de direito. Essa impunidade, face à fragilidade do
sistema jurídico ante o sistema político, viabiliza o escarnio da politica
nacional. A dança do deputado Carlos Marun (PMDB-MS), da base aliada do
governo, quando do arquivamento de mais uma denuncia contra o presidente Temer,
demonstra a forma descarada com que a classe política vem tratando os seus
eleitores, fato este já ocorrido em outra época quando a deputada Ângela Guadagnin
(PT-SP) dançou no plenário após a absolvição do seu colega João Magno (PT-MG)
acusado de envolvimento com o mensalão.
A compra de votos por parte do
presidente Temer, através de liberação de recursos, para que os políticos votem
a favor da não abertura de apuração contra as denuncias de envolvimento em
crimes de corrupção também ratifica o escarnio político sob a tutela do sistema
jurídico. O cenário atual e o que se avizinha estão muito longe do que
expectamos em termos de uma moralidade dentro do sistema político e de uma eficaz
normatização no âmbito do sistema jurídico em prol de um efetivo Estado
Democrático de Direito.
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