George Orwell, em sua obra imaginativa 1984, denunciou a estratégia do totalitarismo comunista de destruir as palavras com um vocabulário que ele denominou de novilíngua. Os formuladores do novo vocabulário partem do princípio dialético de que toda palavra já contém em si mesmo o seu oposto. Logo, uma mesma palavra pode significar ao mesmo tempo A e B, destruindo o princípio da identidade, onde A é A, e o princípio da não contradição, onde A não pode ser ao mesmo tempo B. O duplo sentido contraditório da palavra serve para enquadrar aqueles que destoam do novo senso comum imposto pelo regime: “Quando aplicado a um adversário, é ofensa; aplicada a alguém com quem você concorda, é elogio”.
Orwell afirma que o verdadeiro objetivo da novilíngua é estreitar o pensamento, tornando literalmente impossível qualquer pensamento criminoso. “Na realidade”, completa o autor, “não haverá pensamento tal como entendemos hoje”, onde a nova ortodoxia significará não pensar.
Setenta e três anos após sua primeira publicação (1949) podemos constatar no Brasil a aplicação da novilíngua comunista cuidadosamente elaborada pelos intelectuais traidores do ofício de produzir ideias para, descaradamente, propagar doutrinas marxistas, utilizando para isso a novilíngua na política, na mídia, na arte, na educação etc. Os reflexos desse uso são percebidos sem muita dificuldade no empobrecimento da inteligência. Mas qual a verdadeira origem dessa doença? Se a doença é no âmbito do pensamento, só podemos encontrar sua causa no próprio pensamento. Este pensamento é o nominalismo. Mas qual a sua origem e a quem se opõe?
A filosofia nominalista surgiu no século XIV, no final da Idade Média, e foi elaborada por Guilherme de Ockham. Ela se opõe, no campo epistemológico, à corrente realista aristotélica-tomista, eliminando a operação abstrativa que leva aos universais; negando o valor objetivo do conceito afirmando que os universais não passam de palavras vãs. Segundo Gustavo Corção, em sua obra Dois amores, duas cidades, para o nominalismo só as proposições podem ser conhecidas, reduzindo o conceito “a um elemento de metalinguagem”. Ele diz que “o caráter radical do nominalismo é o imanentismo, pelo qual todo o universo oferecido ao conhecimento é o universo imanente do próprio sujeito cognoscente”. Temos aí a raiz do subjetivismo kantiano e do relativismo marxista; temos aí o que Tomas Mann denominou, em Doutor Fausto, de “fetichismo de nomes”.
Se no realismo aristotelismo-tomista, diz Corção, “o dualismo se traça com a fundamental distinção entre as duas ordens de existência: a ordem da natureza e a ordem intencional ou gnosiológica” (ou seja, o pensamento e o objeto como dois campos distintos); no nominalismo, o dualismo “encerra o cognoscente em seu imanentismo, e sepulta o ser numa irremediável obscuridade”. Desse imanentismo nominalista nasceram o empirismo e o idealismo modernos “que faz o conhecimento terminar na sensação ou na ideia; e vemos que o conhecimento propriamente dito não atinge o mundo exterior”, pois tudo fica restrito ao sujeito cognoscente.
Com o nominalismo, as palavras vão variar semanticamente. O sentido do termo, diz Corção, “pode deslocar-se da parte para o todo, da causa para o efeito ou vice-versa, ou de um objeto para o outro que não tenha termo próprio”. Corção dá o exemplo da variação do termo aparência: “Na linguagem antiga, a aparência (apparentia sensibilia) é aquilo que a coisa é para a intuição sensível. Assim, o fulgor do sol é a aparência, a mesa em que escrevo é uma aparência, o amigo que entrou com riso afável é uma aparência. Na linguagem antiga, e ainda hoje na língua filosófica (para um tomista), aparência quer dizer evidência para os sentidos, e conota a ideia de veracidade e até de infalibilidade na sua ordem”. No sentido moderno, o termo aparência “passou a conotar ideias de dolo e de ilusão: é o que uma coisa parece ser...mas não é! Ou é um aspecto enganador da realidade escondida. [...] Em linguagem moderna qualquer um de nós pode dizer sentenciosamente, ou melancolicamente, que as aparências enganam, coisa que deixaria Santo Tomás horrorizado e pronto para corrigir: – Não, o que nos engana são os julgamentos, e não as aparências”.
Essa variação semântica é, grosso modo, produto das mentalidades revolucionárias de uma elite intelectual que, segundo Thomas Sowell, estabeleceu uma eugenia verbal que seleciona tanto as palavras como os fatos: “Palavras que adquiriram conotações particulares ao longo dos anos a partir das experiências acumuladas de milhões de pessoas, atravessam sucessivas gerações, passam a ter o seu significado corrompido por um número relativamente pequeno de intelectuais contemporâneos, os quais simplesmente suprimem o antigo termo, substituindo por outro para designar coisas iguais, até que as novas palavras substituam as antigas. Portanto, ‘mendigo’ foi substituído por ‘sem-teto’, ‘pântano’ por ‘paraíso das águas’, e ‘prostitutas’ por ‘profissionais do sexo’”.
O nominalismo, diz Corção, substituiu a noção de conhecimento pela noção de informação; substitui “a aspiração de conhecer em profundidade, pelas causas, por uma aspiração menos corajosa de conhecer pelos efeitos, pelas manifestações fenomenológicas”, bem como substitui “a suma que constitui uma síntese, por uma soma que apenas constitui um cabedal” como, por exemplo, pode se verificar na Enciclopédia dos iluministas.
Ainda no plano gnosiológico, o “resultado prático da filosofia nominalista”, diz Richard M. Wever, em sua obra As ideias têm consequências, “é o banimento da realidade percebida pelo intelecto e a suposição de que a realidade é aquilo percebido pelos sentidos”. Essa negação dos universais, prossegue ele, “traz consigo a negação de tudo quanto transcenda a experiência”, estabelecendo a negação da própria verdade objetiva; e sem esta verdade “não há como escapar do relativismo do ‘homem, medida de todas as coisas’”.
A substituição da verdade do intelecto pelos fatos da experiência, refletiu, diz Wever, na educação: “Aqui começa a investida contra a definição: se as palavras já não correspondem a realidades objetivas, usá-las de forma indiscriminada não parece ser um grande mal”. Com isso, “enfraquece a fé na linguagem como meio para alcançar a verdade”, bem como a fé no conhecimento, já que “não há conhecimento no nível da sensação”; pois todo conhecimento “se refere aos universais, e tudo aquilo que conhecemos como verdadeiro nos permite fazer previsões”. Se “o processo de aprendizagem envolver interpretação”, argumenta o autor, então “quanto menor for o número de particulares por nós requeridos para chegar a uma generalização, mais competentes seremos na escola da sabedoria”.
Se para o nominalismo o conhecimento se limita as sensações, então só existe para essa concepção filosófica a realidade sensível, sendo tudo que não é percebido pelos sentidos irreal ou ilusório. René Guénon, em sua obra A crise do mundo moderno, cita como exemplo de nominalismo o pragmatismo: para essa corrente “o ‘bom senso’ consiste em não ultrapassar o horizonte terrestre prático imediato; é sobretudo para ele que só o mundo sensível é ‘real’, e que não há qualquer conhecimento que não provenha dos sentidos”. Ademais, alerta o autor, “este conhecimento restrito vale somente na medida em que permite satisfazer a necessidades materiais e de vez em quando a um certo sentimentalismo, pois é preciso dizer claramente – mesmo indo de encontro ao ‘moralismo’ contemporâneo, – que o sentimento encontra-se na realidade muito perto da matéria”. Dentro do contexto do pragmatismo, prossegue ele, “não sobra mais lugar algum para a inteligência, a não ser quando ela consente em sujeitar-se à realização de fins práticos, em ser somente um simples instrumento submetido às exigências da parte inferior e corporal do indivíduo humano ou de acordo com uma singular expressão de Bergson ‘um utensílio para fazer utensílios’”.
Julien Benda, em sua obra A traição dos intelectuais, também faz referência ao nominalismo quando afirma que os intelectuais modernos não só passaram a desprezar a moral universal, mas também a verdade universal. Eles passaram a empregar a metafísica da adoração do contingente em detrimento do eterno. Com essa exaltação ao individualismo, ao particularismo, ao contingente, os intelectuais modernos passaram, “a considerar toda coisa apenas enquanto existe no tempo, isto é, enquanto constitui uma sucessão de estados particulares, um ‘devir’, uma ‘história’, jamais enquanto, fora do tempo, ela oferece uma permanência sob essa sucessão de estados distintos; sobretudo, refiro-me à afirmação segundo a qual a visão das coisas sob o aspecto histórico é a única séria, a única filosófica, enquanto a necessidade de vê-las sob o modo do eterno é uma espécie de gosto infantil por fantasmas e merece desprezo”.
Sem a verdade universal só resta a pseudoverdade subjetiva ou, como declara Sowell, uma “verdade privada”, onde cada uma tem a sua, ignorando os processos de validação. Isso permitirá, prossegue ele, “que muitos intelectuais vejam toda sorte de fenômenos de ordem social, econômica ou científica como mera noções subjetivas, o que permite, implicitamente, a adoção de modelos favorecidos ideologicamente, transformando-os em ‘realidade’ e utopia”.
É o nominalismo, como vimos, que está na base da novilíngua e será adotada pelo comunismo-marxista para rotular as coisas e as pessoas conforme as circunstâncias e os interesses. Como indica Roger Scrutun, em seu livro Uma filosofia política: argumentos para o conservadorismo, a linguagem política foi adotada pelos comunistas desde o início: “era necessário elaborar rótulos para estigmatizar o inimigo interno e justificar sua expulsão: ele era um revisionista, um desviacionista, um esquerdista imaturo, um socialista utópico, um fascista social e assim por diante”.
Chegou-se à conclusão, com a eficácia da rotulação na marginalização e condenação dos oponentes do Partido Comunista, diz Scrutun, de que era possível: a) “modificar a realidade por meio da mudança da linguagem”; b) “criar uma cultura proletária inventando a palavra ‘proletkult’”; c) “provocar o colapso da economia livre bradando ‘crie do capitalismo’ sempre que o assunto era mencionado”; e, d) “associar o poder absoluto do Partido ao livre consentimento das pessoas apresentando o governo comunista como ‘centralismo democrático’”.
Com a novilíngua, a linguagem deixa de descrever a realidade para se apossar dela. “As sentenças na novilíngua”, diz Scruton, “se parecem com asserções, mas a lógica que subjaz a elas é do encantamento”. Seguindo o viés nominalista, na gramática assertória da novilíngua as palavras triunfarão sobre as coisas. É justamente dentro dessa nova lógica que o racismo e a xenofobia se transformam em crimes de opinião, tornando os indivíduos, esclarece o filósofo inglês, “meras corporificações dos ‘ismos’ que aparecem neles”.
Com a novilíngua “o acordo e o desacordo, a crença e a dúvida, a verdade e a mentira se tornam indistinguíveis”, declara Scruton. Ao negar a realidade, a novilíngua, prossegue ele, “também a endurece ao transformá-la em algo hostil e impenetrável, contra o qual temos de debater e que temos de superar”. Ao impor um projeto, a novilíngua: a) “elimina a linguagem que permite aos seres humanos a viver sem um projeto”; e, b) “a justiça não diz respeito às relações individuais, mas à ‘justiça social’, o mesmo tipo de ‘justiça’ imposto por um projeto que invariavelmente implica tratar os indivíduos de forma injusta, privando-os de sua liberdade, de seu lar e de seus bens”.
Como havia dito no início deste texto, o nominalismo, juntamente com suas crias (positivismo, pragmatismo, empirismo, idealismo, criticismo, marxismo e historicismo), nega o universal em prol do relativismo e do subjetivismo. Com isso, refuta o realismo, especialmente o aristotélico e sua concepção metafísica de verdade transcendente, ou seja, de verdade como correspondência entre o pensamento e o objeto. Mas se no homem está contido a ideia de universal, como prega Aristóteles, o nominalismo e suas variantes modernas também negam o própria capacidade humana de alcançar a verdade, pois são todas elas doutrinas céticas no que tange à possibilidade do conhecimento. Com isso, a realidade para elas são meros joguetes de palavras, sem qualquer responsabilidade com os fatos reais, criando uma geração de esquizofrênicos.
Como uma palavra passa a ter vários significados, dependo de quem a expressa ou para quem se direciona – podendo ser interpretada como boa ou má, correta ou falsa – a possibilidade de diálogo sem conflitos fica quase que impossível. Aliás, a própria possibilidade de diálogo fica impossível, pois passa a não haver mais um entendimento comum sobre as coisas. Sobre isso, Aristóteles explica de forma brilhante no Livro IV da Metafísica.
Aristóteles inicia sua explicação afirmando que “a expressão ser ou não ser possui um significado definido, de modo que nem tudo pode ser ‘assim e não assim’”. Tomando como exemplo a palavra homem: “se X significa homem, então se qualquer coisa for homem, sua humanidade consistirá em ser X. E não faz diferença mesmo que se dissesse que homem possui diversos significados, desde que em número limitado, visto que se poderia atribuir um diferente a cada fórmula”. Ele exemplifica: “poder-se-ia dizer que homem não possui um significado, mas vários, um dos quais dispõe da fórmula animal bípede, podendo haver outras fórmulas também caso fossem em número limitado; com efeito, um nome particular poderia ser atribuído a cada fórmula [por exemplo: animal racional ou animal falante]”. Entretanto, alerta o filósofo: “Se, por outro lado, fosse dito que o homem possui um número infinito de significados, é óbvio que não poderia haver discurso algum; de fato, não ter um significado é não ter nenhum significado, e se as palavras não têm nenhum significado, o discurso com os outros [indivíduos], e mesmo, a rigor, consigo mesmo é nulo, pois é impossível pensar em qualquer coisa se não pensamos em uma coisa, e mesmo que isso fosso possível, um nome poderia ser atribuído àquilo que pensamos. Que este nome, como dissemos no início, tenha significado, e que tenha um significado”.
Adotando o princípio da identidade, Aristóteles prossegue afirmando que “é impossível que ser homem deva ter o mesmo significado que não ser homem”; apoiando-se no princípio da não contradição, dirá que “será impossível para a mesma coisa ser e não ser, exceto por equivocação, como, por exemplo, alguém que chamamos de homem, outros poderiam chamar de não homem; mas o problema é se a mesma coisa pode, simultaneamente, ser e não ser homem, não no nome, mas de fato [não seria o caso dos nomes diversos dados aos homens (me refiro aos de sexo masculino de fato) que se dizem não homens e das mulheres (me refiro aos de sexo feminino de fato) que se dizem não mulheres na nossa sociedade esquizofrênica?]”.
Aristóteles prossegue sua explicação com um argumento que está no cerne da esquizofrenia nominalista e de suas variantes: “Se homem e não homem não possuem significados diferentes, está claro que não ser um homem não significará nada diferente de ser um homem; e assim, ser um homem será não ser homem; eles serão um”. É por isso que racismo e homofobia, palavras mais usadas atualmente do minúsculo dicionário da novilíngua comunista, pode ser qualquer coisa.
Esclarece ainda Aristóteles com o exemplo do significado de homem que “não pode ser verdadeiro dizer simultaneamente que a mesma coisa é e não é homem. E o mesmo argumento vale também no caso de não ser homem, porque ser homem e ser não homem possuem significados diferentes, visto que mesmo ser branco e ser homem possuem diferentes significados”. É por isso que para os nominalistas a verdade não tem importância, sendo verdadeiro aquilo que é útil (pragmatismo) ou aquilo que é coerente com outras premissas (criticismo) ou aquilo que está situado dentro de um determinado contexto histórico (marxismo e historicismo) ou aquilo que os meus sentidos captam (positivismo e empirismo) ou aquilo que minha ideia cria (idealismo).
Nesse oceano de verdades subjetivas não há realidade que se sustente e nem mentalidade que permaneça sã. O mundo criando pelos nominalistas é um mundo de sofistas, onde todas a opiniões, assim como todas as aparências, são verdadeiras. O que de fato os nominalistas fazem em seus discursos (popularizada de narrativas) é a supressão da substância e da essência das coisas, como já sinalizava Aristóteles em relação aos sofistas, afirmando que todas as coisas são acidentes. Dentro do mundo esquizofrênico dos nominalistas, o homem passa ser definido por sua cor, nacionalidade, classe, instrução, idade, sexualidade etc. Os reflexos disso para a compreensão da estrutura da realidade serão nefastos, pois incide diretamente na faculdade de entendimento, faculdade esta de vital importância para a sanidade mental.
Nenhum comentário:
Postar um comentário