quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O NOVO ANTISSEMITISMO

 

        


    O antissemitismo surgiu na Europa no último terço do século XIX com o advento do imperialismo pós Primeira Guerra Mundial. Esse sentimento antissemita parece surgir primeiro como uma forma de discriminação social, mais especificamente uma discriminação de classe, como ilustra Hannah Arendt em sua obra Origens do totalitarismo: “os judeus diferiam das demais classes por causa da sua relação especial com o Estado, diferiam de todas as outras nacionalidades na Áustria por causa da sua relação especial com a monarquia dos Habsburgos”. Com isso, “toda classe que entrava em conflito aberto com o Estado virava antissemita, assim, na Áustria, toda a nacionalidade que entrava em conflito aberto com a monarquia iniciava seu combate atacando os judeus”.

    Para Arendt foi a imposição da condição de igualdade que alimentou os processos discriminatórios, criando, assim, um paradoxo: “Quanto mais tendem as condições para a igualdade, mais difícil se torna explicar as diferenças que realmente existem entre pessoas”. Com isso, “fugindo da aceitação racional dessa tendência, os indivíduos que se julgam de fato iguais entre si formam grupos que se tornam mais fechados com relação aos outros e, com isto, diferentes”. Essa modificação do sentido da igualdade, passando do conceito político para o conceito social, tona-se “ainda mais perigosa quando uma sociedade deixa pouca margem de atuação para grupos e indivíduos especiais, pois então suas diferenças com relação à maioria se tornam ainda conspícuas”.

    O grande desafio da sociedade moderna consiste, diz a filósofa alemã, em estabelecer uma relação entre as diferenças naturais e a exigência de uma igualdade no âmbito sociopolítico: “Foi esse novo conceito de igualdade que tornou difíceis as relações raciais, pois nesse campo lidamos com diferenças naturais, que nenhuma mudança política pode modificar”. E foi justamente essa exigência do reconhecimento de que todos os indivíduos são iguais que os conflitos entre grupos diferentes assumiram formas cruentas como foi o caso dos judeus, onde tal exigência descambou para a discriminação social, num primeiro momento, e depois para a discriminação racial.

    Com a ascensão do nazismo na Alemanha, as diversas formas de discriminação contra os nazistas elevaram-se exponencialmente. Os nazistas colocaram como posição central da sua propaganda o problema judaico, fazendo com que o antissemitismo se tornasse não mais uma questão de opinião, como afirma Arendt, nem mesmo uma questão de política nacional, “mas sim a preocupação íntima de todo indivíduo na sua existência pessoal”. Com isso, a propaganda nazista transformou o antissemitismo “em um princípio de autodefinição, libertando-o assim da inconstância de uma mera opinião”.

    Para alcançar o seu propósito de eliminação dos judeus não só da Alemanha, mas também da face da terra, os nazistas apelaram para a estratégia da desinformação, utilizando-se de um documento forjado intitulado Protocolos dos sábios do Sião, que descrevia o plano dos judeus de dominação mundial, fato este que contrastava com o plano nazista de implementação do seu império mundial – o Terceiro Reich.

    Barnard-Henri Lévy diz, em seu obra O espírito do judaísmo, que o antissemitismo “é um delírio muito especial que sempre teve como uma de suas particularidades, em todas as etapas de sua história, o fato de escolher as palavras certas para conferir à sua irracionalidade uma aparência de razão”. O antissemitismo é “um discurso de raiva em estado puro, de violência bruta e sem lógica alguma, mas que sabe que só chegará a convencer mais pessoas, a fortalecer-se e a ter um belo futuro se conseguir revestir o seu ressentimento e dotá-lo de uma aparente legitimidade”. Ademais, ele “é como uma pessoa que, no fundo, sempre encontrou uma maneira de fazer acreditar que o ódio que dirige contra alguns é apenas o fruto, ou o reflexo, do amor que afirma dirigir a outros”.

    Ao longo da história recente houve, conforme Lévy, vários tipos de discursos antissemitas que se conformaram ao espírito do tempo. De forma cronológica destacou-se o antissemitismo católico, que dizia o seguinte: “Não odeio os judeus tanto quanto adoro a figura de Cristo que eles ultrajam de maneira tão pecaminosa”. Há depois o antissemitismo agnóstico, que dizia o seguinte: “Se devemos odiar este povo, não é pelo fato de ter matado Cristo, e sim, ao contrário, pôr tê-lo inventado”. O terceiro tipo nasce no final do século XIX com a imposição do modo de produção capitalista e é denominado de antissemitismo socialista, cuja aversão aos judeus seguia o seguinte discurso: "Para nós, pouco importa se o judeu inventou ou matou Cristo; não somos nem piedosos o bastante nem suficientemente impiedosos para dar a esse caso importância que lhe atribuímos, há séculos, os devotos de todo tipo; somo, ao contrário, socialistas; preocupamo-nos com aqueles que são humilhados; e, considerando essa preocupação, considerando o amor fervoroso pela plebe sagrada que nos consome, considerando a nossa vontade de identificar e em seguida quebrar as correias que mantêm prisioneira, somos obrigados a constatar que os judeus estão no centro do mais amplo sistema de extorsão plutocrática, desprovido de qualquer lembrança de humanidade, e é por isso que nós nos voltamos contra eles".

    Há um quarto tipo de discurso que surge concomitantemente ao terceiro que foi denominado de antissemitismo racista, que afirma o seguinte: "Também não somos cristãos nem anticristãos; e tampouco é um problema nosso que os judeus sejam ligados ao mundo mortífero do dinheiro; mas é preocupante, em contrapartida, o fato de encarnarem uma outra raça, uma raça impura. Uma raça suja, cujos estragos produzidos nas belas e saudáveis raças arianas temos lamentavelmente de constatar".

    Esses tipos de antissemitismo são, segundo Lévy, imagens construídas de um mesmo espírito demoníaco seja porque: a) “a imagem anterior já não está em sintonia com a sensibilidade ou com as necessidades ideológicas do novo período”; b) “a mascará se desfez e o álibi já não consegue dissimular a base nitidamente criminosa da qual era apenas o biombo”; c) “o dispositivo colocado em prática se revela mais criminoso do que o percebido”.

    Em meados do século XX uma nova roupagem de antissemitismo surge como um conjunto de proposições que são, segundo Lévy: "novas o suficiente para não parecerem comprometidas demais com as cenas criminosas do passado e para parecerem em consonância, sobretudo, com a sensibilidade, as emoções, as grandes preocupações, por vezes o sentimento do Justo, do Verdadeiro e do Bem em vigor neste novo momento".

    O novo discurso antissemita, conforme o autor, apresenta três enunciados: O primeiro enunciado diz o seguinte: “Não temos nada contra os judeus”! Não compartilhamos nem das ações nem das palavras da “ideologia mortífera que foi o antissemitismo das épocas antigas”. Todavia, somos “obrigados a observar que ser judeu é, em um grande número de casos, se definir a partir da fidelidade à Israel”. Mas Israel é um Estado: “a) ilegítimo, pois foi erguido em um território que não era o seu lugar; b) colonialista, racista, fundamentalmente criminoso e até mesmo fascista, ao procurar esmagar os protestos de seus adversários”.

    Nasce com esse novo enunciado o antissemitismo antissionista, que diz o seguinte: "Meu Deus, como era belo aquele judeu dos tempos em que o mundo estava em guerra contra ele! Mas então veio o tempo do sionismo e, como o sionismo, a transformação das vítimas em carrascos e a tragédia dialética que faz com que seja ele, o judeu, que entra, agora, em guerra contra o mundo – e isso não, isso não é admissível". 

    O segundo enunciado antissionista basicamente nega o genocídio em massa dos judeus, nega o Holocausto, a Shoah. O argumento é este: "Não temos nada, realmente nada, contra os judeus, cujo mérito, através dos séculos, não poderia suscitar nada que não seja a compaixão universal. Mas observamos que o argumento central do sionismo, pelo qual se procura demonstrar a sua necessidade e no qual se baseia o direito de Israel à existência, aquele que ele nos dirige como se fosse uma ‘clava moral’ toda vez que criticamos a imperdoável espoliação que está na própria fonte dessa existência, é o episódio de seu martírio que leva o nome de Shoah".

    Para os adeptos desse argumento negacionista, o holocausto “é um crime obscuro cuja verdade histórica ainda precisa, em parte, ser estabelecida. Trata-se de um sofrimento que, se não é imaginário, é, no entanto, exagerado pelos sobreviventes e pelos filhos dos sobreviventes, que fazem disso uma religião”. Eles questionam ainda o número de mortes nos campos de concentração nazistas: "Mesmo que não seja imaginado, tampouco exagerado, mesmo que os números fossem aquilo que nos falam e que os processos de assassinatos sejam aquilo que nos descrevem na superabundante literatura relacionada ao 'Shoah business', o que são 6 milhões de mortos quando se pensa na escala não só da história universal, mas mesmo das guerras do século XX. [...] Miserável povo, esse que se utiliza de uma excepcionalidade mal fundamentada para erguer um Estado que carrega a culpa já no seu próprio princípio!".

    O terceiro e último enunciado do antissemitismo antissionista é o seguinte: “Pouco importa se a Shoah é um ficção ou um simples detalhe. Deixemos de lado essa discussão inútil sobre a singularidade do crime e sua excepcionalidade. E finjamos admitir a versão dada pela nova religião”. Todavia, há atualmente outros crimes que são cometidos, inclusive os praticados pelos judeus contra os palestinos, que não têm a repercussão e o alarde da Shoah. “Essa luz projetada sobre os mortos de ontem, até mesmo de anteontem, não tem como contrapartida inevitável manter na obscuridade os mortos de hoje e de amanhã?”. Ou seja, não estaria os judeus projetando luz sobre os mortos de hoje para encobrir os mortos e o sofrimento de povos dentro do contexto atual, rebaixando, como os palestinos, a mártires de segunda linha? Esse argumento, conforme Lévy, é o da competição entre as vítimas: “A ideia de que não haveria lugar para todos no palco mundial da rememoração do mal. A ideia de que não há no coração humano espaço suficiente para duas desgraças, dois lutos, duas revoltas”. 

    Esses três enunciados antissemita de caráter antissionista, conforme Lévy, são “três tipos de raciocínio que possibilitam que o velho ódio reencontre alguma juventude e que os nossos contemporâneos sejam antissemitas tendo a sensação de não serem”. Entretanto, conforme o autor, “não há como ser antissemita sem ser antissionista, e que o antissionismo é uma passagem obrigatória para um antissemitismo preocupado em recrutar apoios mais amplos do que os saudosos das confrarias desacreditadas”.

    O autor conclui que é inútil pensar no ressurgimento dos velhos tipos de antissemitismos (católico, agnóstico, socialista ou racista) quando é no cruzamento entre o ódio contra Israel (antissionismo), o negacionismo e a nova religião das vítimas, que podemos encontrar a nova licença para odiar os judeus, ou seja, o novo antissemitismo.


                                                                                                            Dequex Araújo Silva Junior




       



sexta-feira, 8 de novembro de 2024

O QUE É REALMENTE RACISMO?

 



No mundo da novilíngua e do duplipensamento (George Orwell), da civilização do espetáculo (Mário Vargas Llosa), da histeria social (Andrew Lobaczewski), da imbecilidade coletiva (Olavo de Carvalho), do exibicionismo moral (Justin Tosi e Brandon Warmke) e da imaginação esquizofrênica (Dequex A. Silva Jr.) está cada vez mais difícil compreender o sentido das coisas. No mundo das narrativas desvairadas o símbolo não está mais em consonância com o significado e, muito menos, com o referente concreto, logo, os conceitos não correspondem à realidade.

Isso ocorre, por exemplo, com a definição de racismo, que passou a significar muitas coisas, dependo de quem enuncia o termo e de quem é a vítima. Os movimentos negro e antirracista, patrocinados por fundações globalistas fomentadoras das revoluções coloridas (Fundações Ford, Rockfeller etc.), assumiram o tal “lugar de fala” para lacrar quem consideram inapropriados para discorrer sobre o tema, mesmo que sejam negros, pois para tais movimentos não basta a cor, há de se ter também a tal da “consciência negra” e aderir ao estilo estético e cultural negro (ideologia de gênero e de raça se afinam na esquizofrenia do sexto sentido em desfavor dos demais).

Mas, retornando à definição de racismo, há, de fato, a necessidade de se buscar um conceito onde símbolo, signo e referente estejam em perfeita consonância. Vou aqui tentar tal feito a partir da definição de Norberto Bobbio, em seu livro Elogio da serenidade, pois considero de grande valia para aclarar as mentes obnubiladas pela cortina de fumaça ideológica, especialmente as teorias racistas de nossa época, visto que, onde tudo é racismo, nada é racismo!

Antes de definirmos o que é racismo torna-se necessário definirmos preconceito. Segundo Bobbio, o preconceito é “uma opinião ou um conjunto de opiniões, às vezes até mesmo uma doutrina completa, que é acolhida acrítica e passivamente pela tradição, pelo costume ou por uma autoridade de quem aceitamos ordens sem discussão”.  Por ser aceita de forma acrítica e passiva, o preconceito, prossegue o autor, “pertence à esfera do não racional, ao conjunto das crenças que não nascem do raciocínio e escapam de qualquer refutação fundada num raciocínio”.

Por pertencer à esfera das ideias que não aceitam se submeter ao escrutínio da razão, o preconceito se distingue de outros tipos de “opiniões errôneas”, visto que, diz Bobbio, o “preconceito é uma opinião errônea tomada fortemente por verdadeira, mas nem toda opinião errônea pode ser considerada um preconceito”. Ele cita dois exemplos para distinguir o preconceito de outros tipos ou formas de opiniões errôneas. A ignorância de algo pode nos levar a uma opinião errônea sobre ele, considerando-o maléfico ou benéfico, podendo, entretanto, após conhecê-lo melhor, corrigir o nosso julgamento sobre ele: podemos considerar uma língua estrangeira como difícil por conhecer mal as suas regras gramaticais, mas podemos modificar a nossa opinião quando passamos a dominá-las.

Um outro exemplo de opinião errônea citado por Bobbio é aquele em que somos enganados por alguém que nos faz tomar como verdadeiro algo que verdadeiramente não é: “podemos cair no erro de boa-fé, mas também neste caso, uma vez desvelado o engano, estamos em condições de reconhecer o erro e restabelecer a verdade”. Assim, “pode-se dizer que se distinguem daquela opinião errônea em que consiste o preconceito todas as formas que podem ser corrigidas mediante os recursos da razão e da experiência”. Justamente “por não ser corrigível ou por ser menos facilmente corrigível, o preconceito é um erro mais tenaz e socialmente mais perigoso”.

Para o jusfilósofo italiano, a força do preconceito reside “do fato de que a crença na veracidade de uma opinião falsa corresponde aos meus desejos, mobiliza minhas paixões, serve aos meus interesses”. Há por trás da convicção com que cremos naquilo que o preconceito nos faz crer uma predisposição emanada da razão prática, que nos induz a acreditar na opinião que o preconceito transmite. Essa predisposição é denominada por Bobbio de “prevenção”. Com isso, o “preconceito enraíza-se mais facilmente naqueles que já estão favoravelmente predispostos a aceitá-lo”, diferentemente das outras formas de opinião errônea, pois nestas não há uma prevenção, ou seja, uma predisposição, sendo, por isso, mais facilmente corrigidas.

Bobbio divide as formas de preconceitos em individuais e coletivos. Os individuais são aquelas “crenças mais ou menos inócuas, que não têm a periculosidade social dos preconceitos coletivos”. Os tipos mais comum dessa forma de preconceito são “as superstições, as crenças mais ou menos idiotas no azar, na maldição, no mau olhado, que nos induzem a cruzar os dedos e a carregar folhas de arruda, ou fazer certos gestos de esconjuro, ou a não realizar certas ações, como viajar às sextas-feiras ou sentar-se à mesa em treze pessoas, a buscar apoio em amuletos para afastar o azar ou em talismãs para trazer sorte”.

Os preconceitos coletivos são aqueles “compartilhados por um grupo social inteiro e estão dirigidos a outro grupo social”. Essa forma de preconceito é perigosa, pois “depende do fato de que muitos conflitos entre grupos, que podem até mesmo degenerar na violência, derivam do modo distorcido com que um grupo social julga o outro, gerando incompreensão, rivalidade, inimizade, desprezo ou escárnio”. Geralmente há nessa forma de preconceito uma rivalidade recíproca entre os grupos desafetos, contribuindo, assim, para a formação do juízo negativo que um determinado grupo faz do grupo rival.

Segundo Bobbio, a consequência principal do preconceito coletivo é a discriminação, entendida como “uma diferenciação injusta ou ilegítima”, porque “vai contra o princípio fundamental de justiça [...], segundo a qual devem ser tratados de modo igual aqueles que são iguais”. Isto é, “se tem uma discriminação quando aqueles que deveriam ser tratados de modo igual, com base em critérios comumente aceitos nos países civilizados [...], são tratados de modo desigual”.

Em sua análise mais aprofundada sobre a discriminação, mais especificamente a discriminação racial, em comparação com outras formas de preconceitos, Bobbio diz o seguinte: para que se configure a discriminação há de se realizar três momentos. “Num primeiro momento, a discriminação se funda num mero juízo de fato, isto é, na constatação da diversidade entre homem e homem, entre grupo e grupo”. Ele considera que nessa etapa ou fase não há nada de reprovável, pois “os homens são de fato diferentes entre si”. Logo, da “constatação de que os homens são desiguais, ainda não decorre um juízo discriminante”.

Num segundo momento, o “juízo discriminante necessita de um juízo ulterior, desta vez não mais de fato, mas de valor”. Isto é, “necessita que, dos dois grupos diversos, um seja considerado bom e o outro mau, ou que um seja considerado civilizado e o outro bárbaro, um superior (em dotes intelectuais, em virtudes morais etc.) e o outro inferior”. Para Bobbio, tal juízo “introduz um critério de distinção não mais factual, mas valorativo, que, como todos os juízos de valor, é relativo, historicamente ou mesmo subjetivamente condicionado”. É nesse intercâmbio entre juízo de fato e juízo de valor que começa a discriminação, pois as pessoas não se limitam mais a afirmar que são diferentes, mas passam a se achar superiores. Esse critério de valor, conforme o autor, “quase sempre é inserido acriticamente no âmbito de certo grupo e que, como tal, se apoia na força da tradição ou numa autoridade reconhecida”.

Nesses dois momentos ou fases, ressalta Bobbio, a discriminação não exerce todas as suas consequência negativas, pois não se pode objetar “quanto à consideração da superioridade dos pais sobre os filhos, até mesmo porque esta superioridade pode estar assentada em bases objetivas, ao menos enquanto os filhos forem pequenos”. Contudo, “desses dois juízos não decorre de modo algum a consequência de que o superior deva esmagar o inferior, pois no caso da superioridade dos pais ante o filho, ou do mestre ante o discípulo, há um dever dos primeiros em ajudar os segundos”. Isso significa que a “relação de diversidade, e mesmo a de superioridade, não implica as consequências da discriminação racial”.      

É no terceiro e último momento ou fase que a discriminação se concretiza e onde ocorre as suas consequências mais nefastas, ressalta Bobbio: “com base precisamente no juízo de que uma raça é superior e a outra é inferior, sustenta que a primeira deva comandar, a segunda obedecer, a primeira dominar, a outra ser subjugada, a primeira viver, a outra morrer”. Dessa “relação superior-inferior podem derivar tanto a concepção de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar um nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto a concepção de que o superior tem o direito de suprimir o inferior”. Desta forma, só “quando a diversidade leva a este segundo modo de conceber a relação entre superior e inferior é que se pode falar corretamente de uma verdadeira discriminação, com todas as aberrações dela decorrente”, sendo uma dessas aberrações, a solução final concebida pelos nazistas aos judeus. Para se chegar a essa aberração, a discriminação nazista teve que passar por esses três momentos: “a) os judeus são diferentes dos arianos; b) os arianos são uma raça superior; c) as raças superiores devem dominar as inferiores, até mesmo eliminá-las quando isso for necessário para a própria conservação”.

Em sua análise explicativa, Bobbio faz referência a outras forma de discriminação, mais notadamente a discriminação natural e a discriminação social. Para ele, a diferença entre essas duas formas de desigualdades torna-se relevante para o problema do preconceito pela seguinte razão: “com frequência o preconceito nasce da superposição à desigualdade natural de uma desigualdade social que não é reconhecida como tal, sem, portanto, que se reconheça que a desigualdade natural foi agravada pela superposição de uma desigualdade criada pela sociedade e, que, ao não ser reconhecida como tal, é considerada ineliminável”. Ele cita como exemplo a questão feminina: “É evidente que entre homem e mulher existem diferenças naturais. Mas a situação feminina que os movimentos feministas refutam é uma situação na qual à diversidade natural se acrescentam diferenças de caráter social e histórico, que não são justificadas naturalmente e que, sendo produto artificial da sociedade dirigida pelos homens, podem (ou devem) ser eliminadas”. Isto é, conforme Bobbio, as diferenças naturais podem ser agravadas pelas diferenças sociais, gerando, assim, o preconceito coletivo. Ademais, as diferença naturais são insuperáveis, como é a diferença entre homens e mulheres, mas as diferenças sociais podem ser superadas através de um processo também social com a finalidade de suplantar os preconceitos sociais.

Bobbio salienta ainda que o preconceito coletivo, onde está inserido a discriminação racial, é, grosso modo, “um preconceito da maioria em relação a uma minoria” cujas vítimas são “as minorias étnicas, religiosas, linguísticas etc.”; e que as consequências desse preconceito podem ser verificadas em três níveis distintos: discriminação jurídica, marginalização social e perseguição política. A primeira diz respeito à exclusão de certos grupos do gozo de direitos. A segunda refere-se aos locais de segregação social como as favelas e os guetos das grandes cidades. A terceira refere-se ao uso dos dispositivos estatais para reprimir os adversários políticos, limitando suas liberdades, inclusive a liberdade de expressão. Todos esses tipos de discriminação os judeus passaram durante o regime nazista.

Tratando mais especificamente do racismo, Bobbio diz que a “condição preliminar para que surja um atitude ou um comportamento racista é a entrada em contato direto com o outro, ou melhor, com os outros”. O racismo se direciona “tanto para a pessoa singular, diante da qual se pode ter sentimentos de ódio, desprezo ou aversão, quanto para um grupo, ou para um indivíduo pertencente a um grupo”. Ou seja, “a presença do outro é portadora de conflito pelo único fato de que um estranho entra em nosso espaço principalmente para tentar sobreviver com expedientes lícitos ou ilícitos e, ao assim proceder, ameaça nossos interesses relacionados ao mercado de trabalho”.

O racismo, como bem disse Bobbio, surge com a atitude de desconfiança para com o outro. Se há um componente material em sua origem por conta da temida concorrência no mercado de trabalho, há também  uma “predisposição mental da qual nasce o racismo”, cuja forma mais evidente é o etnocentrismo”, definida “como aquela atitude de ‘nós’ contra os ‘outros’  que consiste em transformar, de modo indevido, em valores universais, os valores característicos da sociedade a que pertencemos, ainda quando esses valores nascem de costumes locais, particularísticos, com base nos quais é incorreto”.

Há, conforme Bobbio, níveis de tratamentos racistas que vai do grau mais baixo ao mais alto: “No grau mais baixo está o simples escárnio verbal [...]. Num grau um pouco mais alto está a atitude de evitar, de não querer ter nada a ver com eles, de manter distância, sem, porém, chegar a atos hostis [...]. Mais acima está a discriminação, da qual se inicia propriamente o racismo institucional, desde que por discriminação se entenda o não reconhecimento aos “outros” dos mesmos direitos, antes de tudo os direitos pessoais, ou seja, aqueles direitos que pertencem a cada homem como homem, os direitos de liberdade e da propriedade e os principais direitos sociais, a começar da admissão a que possam frequentar a escola obrigatória. 

A discriminação racial, destaca Bobbio, é geralmente seguida pela segregação, “que consiste em impedir a mistura dos diversos entre os iguais, a sua colocação num espaço separado, geralmente em zonas degradadas da cidade, a constrição a viver exclusivamente entre eles, impedindo-lhes a assimilação”. Por fim, o mais elevado grau do racismo “é a agressão, que começa de modo esporádico e casual contra alguns indivíduos e chega ao extermínio premeditado e de massa”. 

Bobbio ainda faz uma distinção interessante entre racismo como reação natural ao outro por questões materiais ou étnicas e o racismo como ideologia, que é aquele que surge como “doutrina consciente e argumentada, que pretende estar baseada em dados de fato e ser cientificamente demonstrável, e pode até mesmo se transformar numa completa, ainda que perversa, visão de mundo”. Tzvetan Todorov chamou, diz Bobbio, o primeiro de racismo propriamente dito e o segundo de racialismo.

Tudo o que foi visto até aqui já nos permite entender que nem todo preconceito é discriminação, e nem toda discriminação é racismo. Ademais, para se configurar como racismo é necessário passar por aquelas fases que Bobbio cita, e que, de fato, define bem a gravidade do mesmo perante outros tipos de discriminação. A distinção entre preconceito e discriminação, entre tipos de discriminação e racismo nos permite também identificar se um discurso é de fato consonante com a realidade ou é uma mera narrativa visando estigmatizar grupos e pessoas que são, por exemplo, contrárias as manobras ideológicas para valorizar por demais qualidades que são contingentes, e que não dizem respeito às qualidades naturais de um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos. Ser preto ou branco, hétero ou homossexual, homem ou mulher, feio ou bonito, pobre ou rico, não define, por exemplo, o caráter da pessoal, pois encontramos pessoas boas em qualquer desses tipos, bem como o seu contrário. Não há dúvidas, pelo menos para as pessoas de mentalidade sã, que muita coisa enquadrada como racismo não passa de um mero preconceito ou de um tipo de discriminação de outra natureza como, por exemplo, a discriminação natural ou de classes. Uma opinião errônea, como cita Bobbio, pode ser modificada através de uma educação que incentive a busca da verdade e que não imponha uma doutrinação ideológica como se verifica atualmente nas instituições culturais, reproduzindo, como afirmei em outro lugar, falsas imagens causadoras da imaginação esquizofrênica.

Uma narrativa que se tornou muito comum no Brasil e que é fruto de uma concepção ideológica que grassa no país há muito é o racismo estrutural. Essa expressão foi cunhada por Silvio Almeida (Ex Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania) e passou a fazer parte dos discursos retóricos da militância acadêmica, dos movimentos negro e antirracista, da mídia ativista e dos imbecis coletivos, que reproduzem acriticamente qualquer bobagem para exibir o seu moralismo de forma pública, especialmente nas redes sociais.

Geisiane Freitas e Patrícia Silva, no livro O que não te contaram sobre o movimento antirracista, afirmam que para Silvio Almeida “o racimo estrutural pode ser desdobrado em processo político e processo histórico”. Com relação ao primeiro, “o racismo pode ser apresentado em dimensão institucional e em dimensão ideológica”; com relação ao segundo, “o racismo se manifesta de forma circunstancial e específica e em conexão com as transformações sociais”. Assim, para Silvio Almeida, “quatro elementos são o cerne da manifestação estrutural do racismo: ideologia, política, direito e economia”.

Para Freitas e Silva, o defensor do racismo estrutural “abriu mão de anunciar o conceito de estrutura em que ele se apoiou para desenvolver o termo ‘racismo estrutural’”, deixando, assim, de provar a sua tese. Com isso, “a teoria do racismo estrutural tem mais apelo retórico do que científico”. Em outras palavraras, o conceito de racismo estrutural não tem referente, permanecendo apenas no campo no símbolo e do significado como pode ser verificado em outros conceitos propagados pela esquerda esquizofrênica, especialmente aqueles que são ditos como estruturais: violência estrutural, machismo estrutural etc.     

Silvio Almeida, conforme Freitas e Silva, adota uma concepção marxista para explicar a tese do racismo estrutural. Ele se baseia no antagonismo de classes para afirmar que há no Brasil um antagonismo de raças. Mas essa concepção marxista, como afirmam as autoras, “ignora as diversas nuances do ser humano; quando aplicada à ciência econômica, demonstra todo o show de horrores e erros que tem em sua essência”. Ele busca estabelecer uma relação entre capitalismo e racismo estrutural, bem como a relação entre os movimentos antirracista e os movimentos anticapitalista: “Movimentos sociais identitários influenciados por esse pensamento compreendem que o proletário ganha uma identidade que ultrapassa sua classe: agora, ele é o proletariado negro ou o proletariado mulher ou o proletariado mulher e negro, e assim por diante. Nisso, sustenta-se a ideia de que o sistema capitalista fomenta o racismo, o machismo e a homofobia”.

Para as autoras, “ao deixar de definir o conceito e de apontar onde está a estrutura do racismo, Silvio Almeida falha na missão de inovação metodológica ao debater racismo no Brasil”. Ademais, “o autor difunde culturalmente em nossa sociedade uma ideia frágil sobre um tema sério e a fantasia com trajes de intelectualidade”. 

O termo racismo estrutural está promovendo, conforme Freitas e Silva, um efeito cortina de fumaça: “O adjetivo ‘estrutural’ nos transmite o entendimento de que há um conjunto de instituições que são as verdadeiras responsáveis pelo racismo, o que tira a responsabilidade do âmbito individual. Ou seja, isenta a individualidade da responsabilidade quando um indivíduo comete um ato racista”. Outro efeito “é a limitação de explicar as conjunturas do indivíduo negro apenas por meio de sua negritude”. Desta forma, “ao tratar todo e qualquer problema da população negra pela tese de racismo estrutural, o fenômeno se repete e, mais um vez, a complexidade humana do sujeito negro é ignorada”.

Verificou-se aqui a importância de se definir racismo para evitarmos que ativistas trasvestidos de intelectuais propaguem suas teorias errôneas e impossibilite identificar se um determinado fato se constitui num preconceito, num ato de discriminação ou se, de fato, constitui uma situação de racismo. No caso brasileiro, pode-se inferir que os negros, especialmente após a abolição da escravatura, sofreram mais um processo de discriminação social (marginalização social) do que de discriminação racial, pois não se verificou aqui, seguindo os níveis distintos de discriminação citados por Bobbio, a discriminação jurídica e muito menos a perseguição política. O que de fato se verificou e se verifica é a segregação social através das favelas, que não se restringe aos negros, pois tais espaços de segregação são formados, grosso modo, pelas camadas sociais menos aquinhoadas economicamente, independentemente da cor.

Pode se deduzir ainda que não há racismo no Brasil, definindo-o como uma forma de preconceito coletivo, pois as diferenças naturais entre brancos e negros não foram suficientes para impedir a mestiçassem no país, onde há uma predominância da característica parda como bem explicou etnograficamente Gilberto Freyre, em seu famoso livro Casa-Grande & Senzala, defenestrado hoje nas universidades pela militância acadêmica. Ou seja, Freyre demonstrou cientificamente, a partir dos métodos etnográficos, que a população brasileira é formada por mestiços, diferentemente da sociedade norte-americana, cujo modelo de análise comparativa vem sendo adotado pelos teóricos dos movimentos negro e antirracista.  

Esse processo de miscigenação, tão encoberto pelos teóricos da raça e pelos movimentos negros contemporâneos, foi altamente criticado por Nina Rodrigues, em seu livro Os africanos no Brasil. Propagador do racismo científico no início do século XX, Rodrigues acreditava que a mistura iria promover uma degeneração crescente: “A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo”. Isto é, antes mesmo de Gilberto Freyre, Nina Rodrigues já confirmava a mestiçagem. Como uma sociedade marcada pela mestiçagem pode ser racista, se a condição para essa prática é a repulsa ao outro?

Na prática, a sociedade brasileira foi se moldando com característica mestiça e isso não pode ser contestado por nenhuma narrativa, pois as evidências naturais e biológicas comprovam objetivamente a mestiçagem. Não está se asseverando, com isso, que não há atos de racismo no Brasil, mas que está muito longe de ser algo considerado coletivo ou institucional como propugnam as narrativas dos ativistas antirracistas alimentandas pelos ideólogos de esquerda, que impregnam os meios acadêmicos com suas teses infundadas como a do racismo estrutural.                                           


                                                                                                            Dequex Araújo Silva Júnior