quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O NOVO ANTISSEMITISMO

 

        


    O antissemitismo surgiu na Europa no último terço do século XIX com o advento do imperialismo pós Primeira Guerra Mundial. Esse sentimento antissemita parece surgir primeiro como uma forma de discriminação social, mais especificamente uma discriminação de classe, como ilustra Hannah Arendt em sua obra Origens do totalitarismo: “os judeus diferiam das demais classes por causa da sua relação especial com o Estado, diferiam de todas as outras nacionalidades na Áustria por causa da sua relação especial com a monarquia dos Habsburgos”. Com isso, “toda classe que entrava em conflito aberto com o Estado virava antissemita, assim, na Áustria, toda a nacionalidade que entrava em conflito aberto com a monarquia iniciava seu combate atacando os judeus”.

    Para Arendt foi a imposição da condição de igualdade que alimentou os processos discriminatórios, criando, assim, um paradoxo: “Quanto mais tendem as condições para a igualdade, mais difícil se torna explicar as diferenças que realmente existem entre pessoas”. Com isso, “fugindo da aceitação racional dessa tendência, os indivíduos que se julgam de fato iguais entre si formam grupos que se tornam mais fechados com relação aos outros e, com isto, diferentes”. Essa modificação do sentido da igualdade, passando do conceito político para o conceito social, tona-se “ainda mais perigosa quando uma sociedade deixa pouca margem de atuação para grupos e indivíduos especiais, pois então suas diferenças com relação à maioria se tornam ainda conspícuas”.

    O grande desafio da sociedade moderna consiste, diz a filósofa alemã, em estabelecer uma relação entre as diferenças naturais e a exigência de uma igualdade no âmbito sociopolítico: “Foi esse novo conceito de igualdade que tornou difíceis as relações raciais, pois nesse campo lidamos com diferenças naturais, que nenhuma mudança política pode modificar”. E foi justamente essa exigência do reconhecimento de que todos os indivíduos são iguais que os conflitos entre grupos diferentes assumiram formas cruentas como foi o caso dos judeus, onde tal exigência descambou para a discriminação social, num primeiro momento, e depois para a discriminação racial.

    Com a ascensão do nazismo na Alemanha, as diversas formas de discriminação contra os nazistas elevaram-se exponencialmente. Os nazistas colocaram como posição central da sua propaganda o problema judaico, fazendo com que o antissemitismo se tornasse não mais uma questão de opinião, como afirma Arendt, nem mesmo uma questão de política nacional, “mas sim a preocupação íntima de todo indivíduo na sua existência pessoal”. Com isso, a propaganda nazista transformou o antissemitismo “em um princípio de autodefinição, libertando-o assim da inconstância de uma mera opinião”.

    Para alcançar o seu propósito de eliminação dos judeus não só da Alemanha, mas também da face da terra, os nazistas apelaram para a estratégia da desinformação, utilizando-se de um documento forjado intitulado Protocolos dos sábios do Sião, que descrevia o plano dos judeus de dominação mundial, fato este que contrastava com o plano nazista de implementação do seu império mundial – o Terceiro Reich.

    Barnard-Henri Lévy diz, em seu obra O espírito do judaísmo, que o antissemitismo “é um delírio muito especial que sempre teve como uma de suas particularidades, em todas as etapas de sua história, o fato de escolher as palavras certas para conferir à sua irracionalidade uma aparência de razão”. O antissemitismo é “um discurso de raiva em estado puro, de violência bruta e sem lógica alguma, mas que sabe que só chegará a convencer mais pessoas, a fortalecer-se e a ter um belo futuro se conseguir revestir o seu ressentimento e dotá-lo de uma aparente legitimidade”. Ademais, ele “é como uma pessoa que, no fundo, sempre encontrou uma maneira de fazer acreditar que o ódio que dirige contra alguns é apenas o fruto, ou o reflexo, do amor que afirma dirigir a outros”.

    Ao longo da história recente houve, conforme Lévy, vários tipos de discursos antissemitas que se conformaram ao espírito do tempo. De forma cronológica destacou-se o antissemitismo católico, que dizia o seguinte: “Não odeio os judeus tanto quanto adoro a figura de Cristo que eles ultrajam de maneira tão pecaminosa”. Há depois o antissemitismo agnóstico, que dizia o seguinte: “Se devemos odiar este povo, não é pelo fato de ter matado Cristo, e sim, ao contrário, pôr tê-lo inventado”. O terceiro tipo nasce no final do século XIX com a imposição do modo de produção capitalista e é denominado de antissemitismo socialista, cuja aversão aos judeus seguia o seguinte discurso: "Para nós, pouco importa se o judeu inventou ou matou Cristo; não somos nem piedosos o bastante nem suficientemente impiedosos para dar a esse caso importância que lhe atribuímos, há séculos, os devotos de todo tipo; somo, ao contrário, socialistas; preocupamo-nos com aqueles que são humilhados; e, considerando essa preocupação, considerando o amor fervoroso pela plebe sagrada que nos consome, considerando a nossa vontade de identificar e em seguida quebrar as correias que mantêm prisioneira, somos obrigados a constatar que os judeus estão no centro do mais amplo sistema de extorsão plutocrática, desprovido de qualquer lembrança de humanidade, e é por isso que nós nos voltamos contra eles".

    Há um quarto tipo de discurso que surge concomitantemente ao terceiro que foi denominado de antissemitismo racista, que afirma o seguinte: "Também não somos cristãos nem anticristãos; e tampouco é um problema nosso que os judeus sejam ligados ao mundo mortífero do dinheiro; mas é preocupante, em contrapartida, o fato de encarnarem uma outra raça, uma raça impura. Uma raça suja, cujos estragos produzidos nas belas e saudáveis raças arianas temos lamentavelmente de constatar".

    Esses tipos de antissemitismo são, segundo Lévy, imagens construídas de um mesmo espírito demoníaco seja porque: a) “a imagem anterior já não está em sintonia com a sensibilidade ou com as necessidades ideológicas do novo período”; b) “a mascará se desfez e o álibi já não consegue dissimular a base nitidamente criminosa da qual era apenas o biombo”; c) “o dispositivo colocado em prática se revela mais criminoso do que o percebido”.

    Em meados do século XX uma nova roupagem de antissemitismo surge como um conjunto de proposições que são, segundo Lévy: "novas o suficiente para não parecerem comprometidas demais com as cenas criminosas do passado e para parecerem em consonância, sobretudo, com a sensibilidade, as emoções, as grandes preocupações, por vezes o sentimento do Justo, do Verdadeiro e do Bem em vigor neste novo momento".

    O novo discurso antissemita, conforme o autor, apresenta três enunciados: O primeiro enunciado diz o seguinte: “Não temos nada contra os judeus”! Não compartilhamos nem das ações nem das palavras da “ideologia mortífera que foi o antissemitismo das épocas antigas”. Todavia, somos “obrigados a observar que ser judeu é, em um grande número de casos, se definir a partir da fidelidade à Israel”. Mas Israel é um Estado: “a) ilegítimo, pois foi erguido em um território que não era o seu lugar; b) colonialista, racista, fundamentalmente criminoso e até mesmo fascista, ao procurar esmagar os protestos de seus adversários”.

    Nasce com esse novo enunciado o antissemitismo antissionista, que diz o seguinte: "Meu Deus, como era belo aquele judeu dos tempos em que o mundo estava em guerra contra ele! Mas então veio o tempo do sionismo e, como o sionismo, a transformação das vítimas em carrascos e a tragédia dialética que faz com que seja ele, o judeu, que entra, agora, em guerra contra o mundo – e isso não, isso não é admissível". 

    O segundo enunciado antissionista basicamente nega o genocídio em massa dos judeus, nega o Holocausto, a Shoah. O argumento é este: "Não temos nada, realmente nada, contra os judeus, cujo mérito, através dos séculos, não poderia suscitar nada que não seja a compaixão universal. Mas observamos que o argumento central do sionismo, pelo qual se procura demonstrar a sua necessidade e no qual se baseia o direito de Israel à existência, aquele que ele nos dirige como se fosse uma ‘clava moral’ toda vez que criticamos a imperdoável espoliação que está na própria fonte dessa existência, é o episódio de seu martírio que leva o nome de Shoah".

    Para os adeptos desse argumento negacionista, o holocausto “é um crime obscuro cuja verdade histórica ainda precisa, em parte, ser estabelecida. Trata-se de um sofrimento que, se não é imaginário, é, no entanto, exagerado pelos sobreviventes e pelos filhos dos sobreviventes, que fazem disso uma religião”. Eles questionam ainda o número de mortes nos campos de concentração nazistas: "Mesmo que não seja imaginado, tampouco exagerado, mesmo que os números fossem aquilo que nos falam e que os processos de assassinatos sejam aquilo que nos descrevem na superabundante literatura relacionada ao 'Shoah business', o que são 6 milhões de mortos quando se pensa na escala não só da história universal, mas mesmo das guerras do século XX. [...] Miserável povo, esse que se utiliza de uma excepcionalidade mal fundamentada para erguer um Estado que carrega a culpa já no seu próprio princípio!".

    O terceiro e último enunciado do antissemitismo antissionista é o seguinte: “Pouco importa se a Shoah é um ficção ou um simples detalhe. Deixemos de lado essa discussão inútil sobre a singularidade do crime e sua excepcionalidade. E finjamos admitir a versão dada pela nova religião”. Todavia, há atualmente outros crimes que são cometidos, inclusive os praticados pelos judeus contra os palestinos, que não têm a repercussão e o alarde da Shoah. “Essa luz projetada sobre os mortos de ontem, até mesmo de anteontem, não tem como contrapartida inevitável manter na obscuridade os mortos de hoje e de amanhã?”. Ou seja, não estaria os judeus projetando luz sobre os mortos de hoje para encobrir os mortos e o sofrimento de povos dentro do contexto atual, rebaixando, como os palestinos, a mártires de segunda linha? Esse argumento, conforme Lévy, é o da competição entre as vítimas: “A ideia de que não haveria lugar para todos no palco mundial da rememoração do mal. A ideia de que não há no coração humano espaço suficiente para duas desgraças, dois lutos, duas revoltas”. 

    Esses três enunciados antissemita de caráter antissionista, conforme Lévy, são “três tipos de raciocínio que possibilitam que o velho ódio reencontre alguma juventude e que os nossos contemporâneos sejam antissemitas tendo a sensação de não serem”. Entretanto, conforme o autor, “não há como ser antissemita sem ser antissionista, e que o antissionismo é uma passagem obrigatória para um antissemitismo preocupado em recrutar apoios mais amplos do que os saudosos das confrarias desacreditadas”.

    O autor conclui que é inútil pensar no ressurgimento dos velhos tipos de antissemitismos (católico, agnóstico, socialista ou racista) quando é no cruzamento entre o ódio contra Israel (antissionismo), o negacionismo e a nova religião das vítimas, que podemos encontrar a nova licença para odiar os judeus, ou seja, o novo antissemitismo.


                                                                                                            Dequex Araújo Silva Junior




       



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