terça-feira, 26 de novembro de 2024

O que é Golpe de Estado?


 


Vimos recentemente que Jair Bolsonaro, juntamente com três dúzias de pessoas, foi indiciado por planejar uma tentativa de Golpe de Estado quando ainda era presidente. Os indiciados foram enquadrados, conforme informação, em dois artigos do Código Penal:  art. 359-L “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”; e, o art. 359-M “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça governo legitimamente constituído”.

Faz-se necessário, a partir dessas informações, averiguar realmente, mesmo de forma superficial, se existe tal tentativa de Golpe de Estado e se esses artigos também estão diretamente relacionados com ele ou se pode atribuir outras ações que podem ser enquadrados por ambos. Para tanto, vamos buscar uma definição de Golpe de Estado iniciando tal busca não pelo que ele é, mas pelo que ele não é.

Golpe de Estado não é um ato de subversão, definido por Alessandro Visacro, em sua obra Guerra irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história, como uma forma de guerra irregular que se baseia “em ações essencialmente psicológicas, diretas e indiretas, ostensivas e cobertas, legais ou clandestinas, armada ou não”. Os atos de subversão são “concebidas e conduzidas com o propósito de obter o enfraquecimento da estrutura psicossocial, política, econômica, científico-tecnológica e militar de um determinado regime, ao mesmo tempo em que despende esforços para difundir o proselitismo da organização militante e atrair para si, de forma progressiva, o apoio popular”. O que busca a subversão é, “basicamente agravar dissensões sociais preexistentes e cristalizar aspirações de mudanças no seio da sociedade”. Ou seja, a subversão tem como finalidade “solapar, minar, enfraquecer, desgastar, desacreditar, desmoralizar, corromper, restringir, comprometer e aliciar” a ordem sociopolítica existente".

Golpe de Estado não é guerra de guerrilha, definida por Visacro como uma “forma de guerra irregular que abrange as operações de combate e todas as atividades de apoio correlatas”. A guerra de guerrilha é “conduzida por forças predominantemente locais, de modo ostensivo e coberto”. Ademais, “fundamenta-se na surpresa, rapidez, ataque e pontos fracos, familiaridade com o terreno e, sobretudo, no apoio da população”. Ela utiliza-se das “incursões, emboscadas, ações de propaganda armada, operações de inquietação, destruição e eliminação”.  Essa forma de guerra irregular “transcende seu caráter eminentemente militar, produzindo efeitos, também nos campos político, econômico e psicossocial”.

Golpe de Estado não é sabotagem, definida por Visacro como “qualquer ação sub-reptícia, ativa ou passiva, direta ou indireta, destinada a perturbar, interferir, causar danos, destruir ou comprometer o funcionamento normal de diferentes sistemas nos campos político, econômico, científico-tecnológico, psicossocial e militar”. Assim, “a sabotagem, tal como o terrorismo, pode ser vista tão somente como um conjunto de técnicas ou recurso operacional largamente empregado na subversão e na guerra de guerrilhas, não constituindo uma operação de guerra irregular por si própria”. Entretanto, “seu emprego sistemático, pode, de fato, caracterizar uma forma específica de combate irregular”. Em suma, “o objetivo da sabotagem é danificar, avariar, inutilizar e destruir pontos vitais do inimigo, tais como a economia do país, a produção agrícola e industrial, o sistema de transporte e comunicações, o sistema militar e policial e seus estabelecimentos e depósitos”.

Golpe de Estado não é terrorismo, definido pelo Departamento de Estado dos EUA, secundo Visacro, como uma forma de “Violência premeditada e politicamente motivada perpetrada contra alvos não combatentes por grupos subnacionais ou agentes clandestinos, normalmente com a intenção de influenciar um público-alvo” . O terrorismo “é um recurso operacional que necessita de poucos agentes envolvidos diretamente na ação, independe de apoio das massas, provoca forte impacto psicológico, custa pouco e pode causar danos físicos proporcionalmente grandes”. Com isso, “é empregado com maior frequência durante as fases iniciais de organização e expansão dos movimentos de luta armada, quando os recursos ainda são escassos e o apoio popular é incipiente”.

Após definirmos o que não é Golpe de Estado, vamos agora para a sua definição. Conforme o Dicionário de Política, Golpe de Estado “é um ato realizado por órgãos do próprio Estado”, ou seja, “faz referência às mudanças no Governo feitas na base da violação da Constituição legal do Estado, normalmente de forma violenta, por parte dos próprios detentores do poder político”. A partir do anos 1970 observou-se, grosso modo, que quem realizou a tomado de poder político por meio do Golpe de Estado foram “os titulares de um dos setores-chaves da burocracia estatal: os chefes militares”.

No âmbito de quem executa o Golpe de Estado, ou seja, sua causa eficiente, verificou-se, ao longo da história, algumas mudanças. Nos primeiros golpes quem fazia era o próprio soberano; depois, o titular ou titulares do pode político; mais recentemente, um setor de funcionários públicos, mais especificamente os militares.

Como vimos acima, o Golpe de Estado não pode ser confundido com terrorismo, sabotagem, ações de guerrilha ou insurreição, bem como, veremos mais adiante, com guerra revolucionária, pois o mesmo, conforme o referido Dicionário, “é executado não apenas por funcionários do Estado, mas mobiliza até elementos que fazem parte do aparelho estatal”. É importante ressaltar que o objetivo inicial dos golpistas, para a obtenção do êxito, “é ocupar e controlar os centros de poder tecnológico do Estado, tais como as redes de telecomunicação, o rádio, a TV, as centrais elétricas, os entroncamentos ferroviários e rodoviários”. Assim o primeiro objetivo do Golpe de Estado é “a conquista dos centros tecnológicos do aparelho estatal. Todavia, para alcançar tal objetivo é necessário que as forças armadas e policiais, responsáveis pela própria manutenção, controle e segurança desses centros de poder, sejam neutralizadas por meio de uma guerra irregular, ou a participação dessas forças no próprio Golpe, se impondo, assim, aos demais setores estatais. Com isso, não há Golpe de Estado sem a participação ativa de integrantes das forças militares e/ou policiais ou sem a neutralização ou a total cumplicidade das forças armadas em sua totalidade.

Há diferença entre Golpe de Estado e Revolução? Segundo o referido Dicionário acima citado há dois entendimentos diametralmente opostos no campo jurídico. Para uma corrente doutrinária, a revolução é um processo que instaura um novo ordenamento político-jurídico, diferentemente do Golpe de Estado, que realiza apenas modificações de menor porte no ordenamento jurídico, sendo ele, assim, visto como uma revolução menor. Hans Kelsen, em sua obra Teoria geral do direito e do Estado, parece não diferenciar de maneira significativa revolução e Golpe de Estado, bem como não parece considerar que ambos podem, de fato, criar uma nova ordem jurídica:

“A ordem jurídica permanece a mesma na medida em que sua esfera territorial de validade permaneça essencialmente a mesma, ainda que a ordem seja modificada de outra maneira que a prescrita pela constituição, por meio de revolução ou coup d’état. Uma revolução vitoriosa ou um coup d’état bem-sucedido, se for válida para o mesmo território, deve ser considerada como uma modificação da antiga ordem, não como uma nova ordem. O governo levado ao poder por uma revolução ou um coup d’état é, de acordo com o Direito internacional, o governo legítimo do Estado, cuja identidade não chega a ser afetada por esses eventos. Portanto, segundo o Direito internacional, revoluções vitoriosas ou coup d’état bem-sucedidos devem ser interpretados como procedimentos por meio dos quais uma ordem jurídica nacional pode ser modificada. Ambos os eventos são, à luz do Direito internacional, fatos criadores de Direito".

Para outros doutrinadores, o Golpe de Estado é um ato politicamente neutro, mas que pode ser um primeiro passo para um processo revolucionário. Mas isso decorrerá caso seja a pretensão daqueles que conquistaram o poder: ‘Em si mesmo, o Golpe de Estado constituirá pura e simplesmente um método para conquistar o poder, sem conotações políticas ou socioeconômicas”. 

Por fim, conforme o Dicionário de Política, “o Golpe de Estado poderá ser melhor definido e melhor conhecido se nos apoiarmos em indicadores empíricos do fenômeno, segundo a sua manifestação histórica concreta”. Segue os indicadores:

a)  a) “Na tradição histórica, o Golpe de Estado é um ato efetuado por órgãos do Estado. Em suas manifestações atuais, o Golpe de Estado, na maioria dos casos, é levado a cabo por um grupo militar ou pelas forças armadas como um todo. Num caso contrário, a atitude das forças armadas é de neutralidade-cumplicidade”;

b)   b) “As consequências mais habituais do Golpe de Estado consistem na simples mudança da liderança política”;

c)    c)  “O Golpe de Estado pode ser acompanhado e/ou seguido de mobilização política e/ou social, embora isso não seja um elemento normal ou necessário do próprio golpe”;

d)    d) “Habitualmente, o Golpe de Estado é seguido do reforço da máquina burocrática e policial do Estado”;

e) “Uma das consequências mais típicas do fenômeno acontece nas formas da instância política, já que é característica normal a eliminação ou a dissolução dos partidos políticos”.  

Como vimos na introdução, Bolsonaro foi, justamente com um grupo de pessoas, indiciado por planejar uma tentativa de Golpe de Estado contra um governo eleito, mas ainda não empossado, sendo, com isso enquadrado nos artigos 359-L “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”; e, 359-M “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça governo legitimamente constituído” do Código Penal.

A primeira observação que considero relevante é que num Golpe de Estado não há necessariamente a busca de abolir Estado algum, bem como modificar a sua ordem jurídica como é o caso, grosso modo, das revoluções: “As consequências mais habituais do Golpe de Estado consistem na simples mudança da liderança política”. Com isso, não me parece congruente aplicar o art. 359-L. Ademais, não houve qualquer tentativa de emprego de violência ou grave ameaça no intuito de tomar o poder, pois o que configura o Golpe de Estado é justamente a tomada do poder. Estendendo um pouco mais essa observação, todo Golpe de Estado é exercido em sua forma atual por meio das forças armadas ou por um grupo de militares: “Na tradição histórica, o Golpe de Estado é um ato efetuado por órgãos do Estado. Em suas manifestações atuais, o Golpe de Estado, na maioria dos casos, é levado a cabo por um grupo militar ou pelas forças armadas como um todo. Num caso contrário, a atitude das forças armadas é de neutralidade-cumplicidade”. Não há qualquer indício de que as forças armadas estavam intencionando dar um Golpe de Estado e não se pode considerar que duas ou três dúzias de militares, incluindo um policial federal e um padre, segundo informações da imprensa, tenham condições de realizar tal Golpe, mesma com todo treinamento, pois não teriam qualquer chance contras as forças militares e policiais. Existiu alguma tentativa, de fato, de ocupação e controle dos centros de poder tecnológico do Estado (as redes de telecomunicação, o rádio, a TV, as centrais elétricas, os entroncamentos ferroviários e rodoviários etc.)?  Houve a tentativa, com os “kids pretos”, de conquistar os centros tecnológicos do aparelho estatal?

A segunda observação: não poderia os indiciados tentar depor um governo, que apesar de eleito, não estava ainda empossado. Ademais, como no caso anterior, tentar algo é uma ação, diferentemente do planejamento, que é apenas uma formulação de ideias, não configurando, assim, crime. Tentar matar alguém não é a mesma coisa de pensar ou planejar matar alguém. Pelas informações vazadas por meio da imprensa militante do relatório da Polícia Federal, que está em sigilo, pelo menos para os advogados dos indiciados, não consta qualquer informação de tentativa em nenhum dos casos citados nos artigos, mas apenas possíveis planos.  A comprovação da não tentativa é justamente o não conhecimento das supostas vítimas sobre o fato até a divulgação do relatório da PF. Ou seja, se não houve violência ou grave ameaça iminente por parte dos indiciados às vítimas como se explica a tentativa? Em que momento, também, tentaram depor o governo após sua posse?

Essas e outras questões merecem esclarecimentos, pois uma das características de um Estado Democrático de Direito, tão exaltado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, é a transparência, há muito obscurecida pela juristocracia implantada no país, onde as decisões políticas estão ficando a cargo de juízes. O processo vai se desenrolar e os fatos irão se impor ante as narrativas e as conjecturas, possibilitando verificar se as observações acima são pertinentes ou não.       

        


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