sábado, 23 de julho de 2022

A INFLUÊNCIA DO NOMINALISMO NA NOVILÍNGUA COMUNISTA






George Orwell, em sua obra imaginativa 1984, denunciou a estratégia do totalitarismo comunista de destruir as palavras com um vocabulário que ele denominou de novilíngua. Os formuladores do novo vocabulário partem do princípio dialético de que toda palavra já contém em si mesmo o seu oposto. Logo, uma mesma palavra pode significar ao mesmo tempo A e B, destruindo o princípio da identidade, onde A é A, e o princípio da não contradição, onde A não pode ser ao mesmo tempo B. O duplo sentido contraditório da palavra serve para enquadrar aqueles que destoam do novo senso comum imposto pelo regime: “Quando aplicado a um adversário, é ofensa; aplicada a alguém com quem você concorda, é elogio”. 

Orwell afirma que o verdadeiro objetivo da novilíngua é estreitar o pensamento, tornando literalmente impossível qualquer pensamento criminoso. “Na realidade”, completa o autor, “não haverá pensamento tal como entendemos hoje”, onde a nova ortodoxia significará não pensar.

Setenta e três anos após sua primeira publicação (1949) podemos constatar no Brasil a aplicação da novilíngua comunista cuidadosamente elaborada pelos intelectuais traidores do ofício de produzir ideias para, descaradamente, propagar doutrinas marxistas, utilizando para isso a novilíngua na política, na mídia, na arte, na educação etc. Os reflexos desse uso são percebidos sem muita dificuldade no empobrecimento da inteligência. Mas qual a verdadeira origem dessa doença? Se a doença é no âmbito do pensamento, só podemos encontrar sua causa no próprio pensamento. Este pensamento é o nominalismo. Mas qual a sua origem e a quem se opõe?

A filosofia nominalista surgiu no século XIV, no final da Idade Média, e foi elaborada por Guilherme de Ockham. Ela se opõe, no campo epistemológico, à corrente realista aristotélica-tomista, eliminando a operação abstrativa que leva aos universais; negando o valor objetivo do conceito afirmando que os universais não passam de palavras vãs. Segundo Gustavo Corção, em sua obra Dois amores, duas cidades, para o nominalismo só as proposições podem ser conhecidas, reduzindo o conceito “a um elemento de metalinguagem”. Ele diz que “o caráter radical do nominalismo é o imanentismo, pelo qual todo o universo oferecido ao conhecimento é o universo imanente do próprio sujeito cognoscente”. Temos aí a raiz do subjetivismo kantiano e do relativismo marxista; temos aí o que Tomas Mann denominou, em Doutor Fausto, de “fetichismo de nomes”.

Se no realismo aristotelismo-tomista, diz Corção, “o dualismo se traça com a fundamental distinção entre as duas ordens de existência: a ordem da natureza e a ordem intencional ou gnosiológica” (ou seja, o pensamento e o objeto como dois campos distintos); no nominalismo, o dualismo “encerra o cognoscente em seu imanentismo, e sepulta o ser numa irremediável obscuridade”. Desse imanentismo nominalista nasceram o empirismo e o idealismo modernos “que faz o conhecimento terminar na sensação ou na ideia; e vemos que o conhecimento propriamente dito não atinge o mundo exterior”, pois tudo fica restrito ao sujeito cognoscente.

Com o nominalismo, as palavras vão variar semanticamente. O sentido do termo, diz Corção, “pode deslocar-se da parte para o todo, da causa para o efeito ou vice-versa, ou de um objeto para o outro que não tenha termo próprio”. Corção dá o exemplo da variação do termo aparência: “Na linguagem antiga, a aparência (apparentia sensibilia) é aquilo que a coisa é para a intuição sensível. Assim, o fulgor do sol é a aparência, a mesa em que escrevo é uma aparência, o amigo que entrou com riso afável é uma aparência. Na linguagem antiga, e ainda hoje na língua filosófica (para um tomista), aparência quer dizer evidência para os sentidos, e conota a ideia de veracidade e até de infalibilidade na sua ordem”. No sentido moderno, o termo aparência “passou a conotar ideias de dolo e de ilusão: é o que uma coisa parece ser...mas não é! Ou é um aspecto enganador da realidade escondida. [...] Em linguagem moderna qualquer um de nós pode dizer sentenciosamente, ou melancolicamente, que as aparências enganam, coisa que deixaria Santo Tomás horrorizado e pronto para corrigir: – Não, o que nos engana são os julgamentos, e não as aparências”.

Essa variação semântica é, grosso modo, produto das mentalidades revolucionárias de uma elite intelectual que, segundo Thomas Sowell, estabeleceu uma eugenia verbal que seleciona tanto as palavras como os fatos: “Palavras que adquiriram conotações particulares ao longo dos anos a partir das experiências acumuladas de milhões de pessoas, atravessam sucessivas gerações, passam a ter o seu significado corrompido por um número relativamente pequeno de intelectuais contemporâneos, os quais simplesmente suprimem o antigo termo, substituindo por outro para designar coisas iguais, até que as novas palavras substituam as antigas. Portanto, ‘mendigo’ foi substituído por ‘sem-teto’, ‘pântano’ por ‘paraíso das águas’, e ‘prostitutas’ por ‘profissionais do sexo’”.

O nominalismo, diz Corção, substituiu a noção de conhecimento pela noção de informação; substitui “a aspiração de conhecer em profundidade, pelas causas, por uma aspiração menos corajosa de conhecer pelos efeitos, pelas manifestações fenomenológicas”, bem como substitui “a suma que constitui uma síntese, por uma soma que apenas constitui um cabedal” como, por exemplo, pode se verificar na Enciclopédia dos iluministas. 

Ainda no plano gnosiológico, o “resultado prático da filosofia nominalista”, diz Richard M. Wever, em sua obra As ideias têm consequências, “é o banimento da realidade percebida pelo intelecto e a suposição de que a realidade é aquilo percebido pelos sentidos”. Essa negação dos universais, prossegue ele, “traz consigo a negação de tudo quanto transcenda a experiência”, estabelecendo a negação da própria verdade objetiva; e sem esta verdade “não há como escapar do relativismo do ‘homem, medida de todas as coisas’”.

A substituição da verdade do intelecto pelos fatos da experiência, refletiu, diz Wever, na educação: “Aqui começa a investida contra a definição: se as palavras já não correspondem a realidades objetivas, usá-las de forma indiscriminada não parece ser um grande mal”. Com isso, “enfraquece a fé na linguagem como meio para alcançar a verdade”, bem como a fé no conhecimento, já que “não há conhecimento no nível da sensação”; pois todo conhecimento “se refere aos universais, e tudo aquilo que conhecemos como verdadeiro nos permite fazer previsões”. Se “o processo de aprendizagem envolver interpretação”, argumenta o autor, então “quanto menor for o número de particulares por nós requeridos para chegar a uma generalização, mais competentes seremos na escola da sabedoria”. 

Se para o nominalismo o conhecimento se limita as sensações, então só existe para essa concepção filosófica a realidade sensível, sendo tudo que não é percebido pelos sentidos irreal ou ilusório. René Guénon, em sua obra A crise do mundo moderno, cita como exemplo de nominalismo o pragmatismo: para essa corrente “o ‘bom senso’ consiste em não ultrapassar o horizonte terrestre prático imediato; é sobretudo para ele que só o mundo sensível é ‘real’, e que não há qualquer conhecimento que não provenha dos sentidos”. Ademais, alerta o autor, “este conhecimento restrito vale somente na medida em que permite satisfazer a necessidades materiais e de vez em quando a um certo sentimentalismo, pois é preciso dizer claramente – mesmo indo de encontro ao ‘moralismo’ contemporâneo, – que o sentimento encontra-se na realidade muito perto da matéria”. Dentro do contexto do pragmatismo, prossegue ele, “não sobra mais lugar algum para a inteligência, a não ser quando ela consente em sujeitar-se à realização de fins práticos, em ser somente um simples instrumento submetido às exigências da parte inferior e corporal do indivíduo humano ou de acordo com uma singular expressão de Bergson ‘um utensílio para fazer utensílios’”.

Julien Benda, em sua obra A traição dos intelectuais, também faz referência ao nominalismo quando afirma que os intelectuais modernos não só passaram a desprezar a moral universal, mas também a verdade universal. Eles passaram a empregar a metafísica da adoração do contingente em detrimento do eterno. Com essa exaltação ao individualismo, ao particularismo, ao contingente, os intelectuais modernos passaram, “a considerar toda coisa apenas enquanto existe no tempo, isto é, enquanto constitui uma sucessão de estados particulares, um ‘devir’, uma ‘história’, jamais enquanto, fora do tempo, ela oferece uma permanência sob essa sucessão de estados distintos; sobretudo, refiro-me à afirmação segundo a qual a visão das coisas sob o aspecto histórico é a única séria, a única filosófica, enquanto a necessidade de vê-las sob o modo do eterno é uma espécie de gosto infantil por fantasmas e merece desprezo”. 

Sem a verdade universal só resta a pseudoverdade subjetiva ou, como declara Sowell, uma “verdade privada”, onde cada uma tem a sua, ignorando os processos de validação. Isso permitirá, prossegue ele, “que muitos intelectuais vejam toda sorte de fenômenos de ordem social, econômica ou científica como mera noções subjetivas, o que permite, implicitamente, a adoção de modelos favorecidos ideologicamente, transformando-os em ‘realidade’ e utopia”.

É o nominalismo, como vimos, que está na base da novilíngua e será adotada pelo comunismo-marxista para rotular as coisas e as pessoas conforme as circunstâncias e os interesses. Como indica Roger Scrutun, em seu livro Uma filosofia política: argumentos para o conservadorismo, a linguagem política foi adotada pelos comunistas desde o início: “era necessário elaborar rótulos para estigmatizar o inimigo interno e justificar sua expulsão: ele era um revisionista, um desviacionista, um esquerdista imaturo, um socialista utópico, um fascista social e assim por diante”.

Chegou-se à conclusão, com a eficácia da rotulação na marginalização e condenação dos oponentes do Partido Comunista, diz Scrutun, de que era possível: a) “modificar a realidade por meio da mudança da linguagem”; b) “criar uma cultura proletária inventando a palavra ‘proletkult’”; c) “provocar o colapso da economia livre bradando ‘crie do capitalismo’ sempre que o assunto era mencionado”; e, d) “associar o poder absoluto do Partido ao livre consentimento das pessoas apresentando o governo comunista como ‘centralismo democrático’”. 

Com a novilíngua, a linguagem deixa de descrever a realidade para se apossar dela. “As sentenças na novilíngua”, diz Scruton, “se parecem com asserções, mas a lógica que subjaz a elas é do encantamento”. Seguindo o viés nominalista, na gramática assertória da novilíngua as palavras triunfarão sobre as coisas. É justamente dentro dessa nova lógica que o racismo e a xenofobia se transformam em crimes de opinião, tornando os indivíduos, esclarece o filósofo inglês, “meras corporificações dos ‘ismos’ que aparecem neles”.

Com a novilíngua “o acordo e o desacordo, a crença e a dúvida, a verdade e a mentira se tornam indistinguíveis”, declara Scruton. Ao negar a realidade, a novilíngua, prossegue ele, “também a endurece ao transformá-la em algo hostil e impenetrável, contra o qual temos de debater e que temos de superar”. Ao impor um projeto, a novilíngua: a) “elimina a linguagem que permite aos seres humanos a viver sem um projeto”; e, b) “a justiça não diz respeito às relações individuais, mas à ‘justiça social’, o mesmo tipo de ‘justiça’ imposto por um projeto que invariavelmente implica tratar os indivíduos de forma injusta, privando-os de sua liberdade, de seu lar e de seus bens”.

Como havia dito no início deste texto, o nominalismo, juntamente com suas crias (positivismo, pragmatismo, empirismo, idealismo, criticismo, marxismo e historicismo), nega o universal em prol do relativismo e do subjetivismo. Com isso, refuta o realismo, especialmente o aristotélico e sua concepção metafísica de verdade transcendente, ou seja, de verdade como correspondência entre o pensamento e o objeto. Mas se no homem está contido a ideia de universal, como prega Aristóteles, o nominalismo e suas variantes modernas também negam o própria capacidade humana de alcançar a verdade, pois são todas elas doutrinas céticas no que tange à possibilidade do conhecimento. Com isso, a realidade para elas são meros joguetes de palavras, sem qualquer responsabilidade com os fatos reais, criando uma geração de esquizofrênicos.

Como uma palavra passa a ter vários significados, dependo de quem a expressa ou para quem se direciona – podendo ser interpretada como boa ou má, correta ou falsa – a possibilidade de diálogo sem conflitos fica quase que impossível. Aliás, a própria possibilidade de diálogo fica impossível, pois passa a não haver mais um entendimento comum sobre as coisas. Sobre isso, Aristóteles explica de forma brilhante no Livro IV da Metafísica.

Aristóteles inicia sua explicação afirmando que “a expressão ser ou não ser possui um significado definido, de modo que nem tudo pode ser ‘assim e não assim’”. Tomando como exemplo a palavra homem: “se X significa homem, então se qualquer coisa for homem, sua humanidade consistirá em ser X. E não faz diferença mesmo que se dissesse que homem possui diversos significados, desde que em número limitado, visto que se poderia atribuir um diferente a cada fórmula”. Ele exemplifica: “poder-se-ia dizer que homem não possui um significado, mas vários, um dos quais dispõe da fórmula animal bípede, podendo haver outras fórmulas também caso fossem em número limitado; com efeito, um nome particular poderia ser atribuído a cada fórmula [por exemplo: animal racional ou animal falante]”. Entretanto, alerta o filósofo: “Se, por outro lado, fosse dito que o homem possui um número infinito de significados, é óbvio que não poderia haver discurso algum; de fato, não ter um significado é não ter nenhum significado, e se as palavras não têm nenhum significado, o discurso com os outros [indivíduos], e mesmo, a rigor, consigo mesmo é nulo, pois é impossível pensar em qualquer coisa se não pensamos em uma coisa, e mesmo que isso fosso possível, um nome poderia ser atribuído àquilo que pensamos. Que este nome, como dissemos no início, tenha significado, e que tenha um significado”.

Adotando o princípio da identidade, Aristóteles prossegue afirmando que “é impossível que ser homem deva ter o mesmo significado que não ser homem”; apoiando-se no princípio da não contradição, dirá que “será impossível para a mesma coisa ser e não ser, exceto por equivocação, como, por exemplo, alguém que chamamos de homem, outros poderiam chamar de não homem; mas o problema é se a mesma coisa pode, simultaneamente, ser e não ser homem, não no nome, mas de fato [não seria o caso dos nomes diversos dados aos homens (me refiro aos de sexo masculino de fato) que se dizem não homens e das mulheres (me refiro aos de sexo feminino de fato) que se dizem não mulheres na nossa sociedade esquizofrênica?]”.

Aristóteles prossegue sua explicação com um argumento que está no cerne da esquizofrenia nominalista e de suas variantes: “Se homem e não homem não possuem significados diferentes, está claro que não ser um homem não significará nada diferente de ser um homem; e assim, ser um homem será não ser homem; eles serão um”. É por isso que racismo e homofobia, palavras mais usadas atualmente do minúsculo dicionário da novilíngua comunista, pode ser qualquer coisa.

Esclarece ainda Aristóteles com o exemplo do significado de homem que “não pode ser verdadeiro dizer simultaneamente que a mesma coisa é e não é homem. E o mesmo argumento vale também no caso de não ser homem, porque ser homem e ser não homem possuem significados diferentes, visto que mesmo ser branco e ser homem possuem diferentes significados”. É por isso que para os nominalistas a verdade não tem importância, sendo verdadeiro aquilo que é útil (pragmatismo) ou aquilo que é coerente com outras premissas (criticismo) ou aquilo que está situado dentro de um determinado contexto histórico (marxismo e historicismo) ou aquilo que os meus sentidos captam (positivismo e empirismo) ou aquilo que minha ideia cria (idealismo).

Nesse oceano de verdades subjetivas não há realidade que se sustente e nem mentalidade que permaneça sã. O mundo criando pelos nominalistas é um mundo de sofistas, onde todas a opiniões, assim como todas as aparências, são verdadeiras. O que de fato os nominalistas fazem em seus discursos (popularizada de narrativas) é a supressão da substância e da essência das coisas, como já sinalizava Aristóteles em relação aos sofistas, afirmando que todas as coisas são acidentes. Dentro do mundo esquizofrênico dos nominalistas, o homem passa ser definido por sua cor, nacionalidade, classe, instrução, idade, sexualidade etc. Os reflexos disso para a compreensão da estrutura da realidade serão nefastos, pois incide diretamente na faculdade de entendimento, faculdade esta de vital importância para a sanidade mental.

 


segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A influência de Karl Marx no antissemitismo de Hitler e dos Alemães

 



Há no imaginário dos intelectuais de esquerda e dos seus epígonos de que marxismo e nazismo são diametralmente opostos, onde o primeiro, grosso modo, representa o bem e o segundo o mal. Nada é mais distante do que isso! Ambos são farinha do mesmo saco. O historiador inglês Poul Johnson, em sua magistral obra Tempos Modernos: o mundo dos anos 20 aos 80, descreve muito bem a influência de Marx no antissemitismo alemão, bem como as concordâncias ideológicas entre os líderes comunista, nazista e fascista. Ou seja, as teorias do ódio, que a intelectualidade esquerdista insiste em imputar à direita, têm como origem Marx. A ideia paranoica de imputar todos os males da humanidade a uma determinada classe ou grupo (no caso do marxismo ortodoxo é a burguesia) impulsionou outras formas degeneradas de gnose como a de raça, influenciada também, diga-se de passagem, pelo romantismo de Rousseau, pelo evolucionismo de Darwin e pela teosofia de Helena Blavatsky (que por sinal é a guru espiritual dos adeptos da Nova Era, do ecologismo, do feminismo, do satanismo, do globalismo e de uma série de ismo contrários aos postulados cristãos).  

Segundo Johnson, o “antissemitismo moderno teórico deriva-se do marxismo e abrangia uma seleção (por razões de conveniência econômica, política e nacional) de uma parte determinada da burguesia passível de agressão”. Lênin já declarava que não apenas os judeus, mas toda a burguesia deveria ser responsabilizada pelos males da humanidade. “É significativo o fato de que todos os regimes marxistas”, diz Johnson, por se apoiarem em explicações paranoicas do comportamento humano, degenerem mais cedo ou mais tarde, para o antissemitismo”. Em suma, conclui o historiador, “o novo antissemitismo era o desvio desastroso do rateio de responsabilidades individuais com relação à ideia de culpa coletiva”.

A influência do marxismo no antissemitismo alemão se deu, conforme Johnson, por causa de proeminentes teóricos do racismo serem também marxistas como, por exemplo, Ludwig Woltmann, “que transformou a luta de classe marxista numa luta de raça mundial, defendendo o despertar das massas pela oratória e pela propaganda, a fim de mobilizar os alemães na conquista necessária para lhes assegurar a sobrevivência e a proliferação como uma raça”.

Ambos os regimes totalitários, o comunismo-marxista e o nazismo-hitlerista, declaram guerra ao liberalismo e ao capitalismo, sendo os judeus vistos como representantes dos dois. “O totalitarismo de esquerda criou”, diz Johnson, “o totalitarismo da direita, o comunismo e o fascismo eram martelo e bigorna pelos quais o liberalismo foi despedaçado”. Nessa relação de antecedente e consequente, diz o autor, o leninismo gerou o fascismo de Mussolini” e o stalinismo “tornou possível o leviatã nazista”.

Essa relação estreita entre comunismo e nazismo, marxismo e hitlerismo, também foi confirmada por F.A. Hayek, em sua obra O caminho da servidão: "É sem dúvida verdade que os socialistas alemães encontraram apoio, no seu país, em certos aspectos da tradição prussiana; e o parentesco entre prussianismo e socialismo, do qual ambos os lados se glorificam na Alemanha, fortalece nosso principal argumento. Mas seria um erro acreditar que foi o elemento especificamente alemão, e não o elemento socialista, que produziu o totalitarismo. Era com efeito, a preponderância das ideias socialistas, e não o prussianismo, que a Alemanha tinha em comum com a Itália e a Rússia – e foi das massas e não das classes imbuídas da tradição prussiana, e auxiliado pelas massas, que surgiu o nacional-socialismo”.

Em outro trecho da mesma obra, Hayek, ao tratar dos antecedentes marxistas vistos no fascismo e nacional-socialismo, cita alguns observadores proeminentes do período como W.H Chamberlin, Walter Lippmann e Peter Drucker. Este, por exemplo, declara que o “fascismo é o estágio atingindo depois que o comunismo se revela uma ilusão, conforme aconteceu tanto na Rússia stalinista como na Alemanha pré-hitlerista”.    

Hitler considerava-se um socialista “e a essência de seu socialismo”, diz Johnson, “estava na ideia de que todo o indivíduo ou grupo deveria trabalhar, sem hesitação, para a política nacional”, não importando “quem fosse o verdadeiro proprietário de uma fábrica, desde que aqueles que a gerenciavam obedecessem [ao führer]”. Hitler declarou a Hermann Rauchsning (um amigo intelectual revolucionário) que o seu socialismo não estava baseado em nacionalização: “Nosso socialismo atinge camadas muito mais profundas. Não muda a ordem externa das coisas, ordena apenas a relação do homem com o Estado...De que serviriam renda e propriedade? Por que precisaríamos socializar os bancos e as fábricas? Nós estamos socializando o povo”. Me perece que os socialistas atuais, ou seja, os marxistas heréticos estão adotando a versão hitlerista de socialismo (criar um senso comum socialistas, tal como propôs Gramsci).

Johnson declara que um “dos aspectos mais perturbadores do socialismo totalitário, seja leninista ou hitlerista (e ambos os regimes políticos agiam tanto como movimentos em busca do poder quanto como regimes que já o desfrutavam), era a maneira pela qual esses regimes eram movidos: guiavam-se pela Lei de Gresham (no campo econômico significa que uma moeda má tende a expulsar do mercado a moeda boa) aplicada ao campo da moralidade política. Assim, o medo afastou-se dos instintos humanitários e um perverteu o outro, levando-se mutuamente para as profundezas do mal”.

Hitler, seguindo o que aprendeu com Lênin e Stálin, criou, diz Johnson, “um regime de terror em larga escala”, concentrando, assim como Lênin, “o poder na sua vontade”. Hitler também “era um gnóstico e, assim como Lênin, achava que sozinho era o autêntico intérprete da história como a personificação do determinismo proletário”. Ele também, assim como o líder comunista, “só confiava em si mesmo como expoente da vontade da raça do povo alemão”.

Hitler importou o sistema de campo de concentração dos russos. “Os campos soviéticos”, diz Johnson, “constituíam uma série de ilhas territoriais substanciais dentro da União Soviética, cobrindo muitos milhares de milhas quadradas”. Mais tarde, alguns sobreviventes e testemunhas disseram que nos campos soviéticos “bastavam vinte a trinta dias para transformar um homem saudável numa ruína física; e alguns atestavam que essas condições eram planejadas deliberadamente, a fim de se conseguir uma alta de mortalidade. Espancamentos brutais eram administrados pelos guardas e também por criminosos profissionais, a quem eram dadas tarefas de supervisão sobre as massas de ‘politizados’ – tudo isso era imitado pelos nazistas” (Sobre a rotina nos campos de concentração stalinista sugiro a leitura dos Contos de Kolimá (seis volumes), de Varlam Chamálov, que sobreviveu como preso político por quase vinte anos. No volume 4, intitulado Ensaios sobre o mundo do crime, ele descreve a participação dos criminosos profissionais (Blateres) não só na administração do campo, mas na própria cultura do local tal como ocorre nos nossos presídios com as facções criminosas).

O índice de mortalidade nos campos de concentração soviéticos, segundo Jonhson, “atingiu um nível quase inimaginável pelo homem civilizado”. O “total de mortes causadas pela política de Stálin situa-se perto dos dez milhões”. Essa “escala de atrocidades em massa cometidos por Stálin encorajou Hitler, em seus esquemas de guerra, a mudar toda a demografia da Europa Oriental”. Nesse processo de engenharia social, “a ‘solução final’ de Hitler para os judeus teve suas origens não só em sua mente febril [eu diria psicopata], mas também na coletivização do campesinato soviético”.

Diante do exposto, uma pergunta sempre vem a minha mente quando vejo a comparação entre o número de mortos provocado pelos regimes comunista e nazista dentro e fora dos campos de concentração: Por que somente os nazistas foram julgados e punidos pelos seus atos de antissemitismo já que os comunistas cometeram os mesmos crimes?

Essa façanha não só foi fruto de um grande trabalho de desinformação, mas também de um mascaramento por parte da elite intelectual. Os intelectuais que apoiaram o nazismo em seus estágios iniciais (intelectuais estes chamados por Eric Voegelin, em sua obra Hitler e os alemães, de intelectuais de ralé ou de iletrados espirituais) não tiveram muita dificuldade em mudar de lado e apoiar sua coirmã totalitária. A justificativa da mudança foi o argumento do mal menor. Conforme Johnson, os intelectuais “encaravam o nazismo como um perigo muito maior, tanto para o seu próprio sistema como para todas as formas de liberdade”. Eles “acreditavam que o fascismo provavelmente se transformaria no sistema de governo predominante na Europa e talvez do mundo todo” e que “a União Soviética parecia ser a única grande potência totalmente antagônica ao fascismo, pronta a ir à luta se necessário”. Assim, “muitos desses intelectuais de esquerda estavam não só preparados para defender as aparentes virtudes do regime de Stálin como também para justificar sua crueldade manifesta”.

Hayek, em obra citada, ressalta também a adesão de muitos intelectuais de esquerda ao nazismo e ao fascismo, mostrando o alinhamento entre as duas ideologias: “Todos os que têm observado a evolução desses movimentos na Itália ou na Alemanha surpreenderam-se com o número de líderes, começando por Mussolini (sem excluir Laval e Quisling), que a princípio foram socialistas e acabaram se tornando fascistas ou nazistas”. Assim como os líderes, houve esse mesmo intercambio entre os liderados: “A relativa facilidade com que um jovem comunista podia converter-se em nazista ou vice-versa era notória na Alemanha, sobretudo para os propagandistas dos dois partidos. Na década de 1930, muitos professores universitários conheceram estudantes ingleses e norte-americanos que, regressando do continente europeu, não sabiam ao certo se eram comunistas ou nazistas – sabiam apenas que detestavam a civilização liberal do Ocidente”.   

Conforme Johson, “os intelectuais ocidentais sabiam o suficiente sobre a inclemência soviética, daí terem que adotar outros critérios para defendê-la. Lincoln Steffens, por exemplo, deu o tom: ‘A traição ao czar não era um pecado, a traição ao comunismo é”. [Bernard] Shaw argumentou: ‘Não podemos nos dar ao luxo de posar com ares de moralistas, quando o nosso vizinho mais empreendido... humana e judiciosamente liquida um punhado de exploradores e especuladores para tornar o mundo seguro para os homens de bem’. André Malraux argumentou: ‘Assim como a Inquisição não afetou a dignidade fundamental do cristianismo, também os julgamentos de Moscou não diminuíram a dignidade fundamental do comunismo’. Muitos intelectuais, inclusive aqueles que sabiam o que a justiça totalitária significava, defenderam os julgamentos”. Inclusive, a KGB “fazia uso frequente dos panfletos pró-Stálin escritos por intelectuais ocidentais, com o objetivo de quebrar a resistência de seus prisioneiros”.

Essa defesa do regime de Stálin por parte dos intelectuais ocidentais, prossegue Johnson, “os envolveu num processo de autocorrupção; transferiu para eles e, consequentemente, para seus países, ajudados pelos seus escritos, parte da decadência moral inerente ao próprio totalitarismo; em especial, sua negação da responsabilidade individual, seja para o bem, seja para o mal”.

Julien Benda, em sua obra A traição dos intelectuais, faz referência também à adesão dos intelectuais aos regimes totalitários, especialmente ao comunista, declarando que ao aderir a ideologia comunista (e o materialismo dialético) os intelectuais traíram o seu verdadeiro ofício. Essa traição “consiste em que, ao adotarem um sistema político voltado a um objetivo prático, eles são obrigados a adotar valores práticos, os quais, por essa razão, não são intelectuais. O único sistema político que o intelectual pode adotar, permanecendo fiel a si mesmo, é a democracia, porque, com seus valores soberanos de liberdade individual, de justiça e de verdade, ela não é prática”. Em outro trecho conclui: “O intelectual traiu vergonhosamente seu dever quando, no momento dos fascismos triunfantes, aceitou o injusto porque era ‘um fato’; mais, fez-se caudatário das filosofias que mais desprezam a idealidade e o proclamou exatamente porque ele encarnava o que naquele instante era ‘a vontade da história’. A lei do intelectual, quando o universo inteiro ajoelha-se diante do injusto transformado em senhor do mundo, é permanecer de pé e opor-lhe a consciência humana”.

De tudo aqui exposto (utilizei apenas algumas referências) já possibilita verificar que as diferenças entre nazismo, comunismo e fascismo são ínfimas pois todos eles têm em sua essência o marxismo como teoria e cosmovisão norteadoras. Ao não associarem marxismo e nazismo, mais do que isso, ao qualificarem o primeiro como benéfico (pois substituiria o reino da necessidade pelo reino da liberdade e da justiça, conforme sua gnose) e o segundo como maligno, os intelectuais de esquerda permitiram a continuidade do projeto totalitário por todo mundo através do comunismo, especialmente o chines, que adota a estratégia do soft power (poder brando) para implanta suave e disfarçadamente sua revolução cultural marxista (para um melhor entendimento dessa estratégia sugiro o livro Cooperação e conflito nas relações internacionais, de Joseph S. Nye Jr). 

Aqueles que adotaram o argumento do mal menor (não sei de onde eles tiraram essa ideia insana de que o comunismo é menos maléfico que o nazismo) não me parece que se arrependeram pela culpa da proliferação do totalitarismo marxista em tempos atuais, especialmente os intelectuais marxistas da América Latina, integrantes ou não do Foro de São Paulo, integrantes ou simpatizantes dos partidos de esquerda. Provavelmente deve ter ocorrido o que Hannah Arendt disse em seu livro Reponsabilidade e Julgamento: “aqueles que escolhem o mal menor [como argumento] esquecem muito rapidamente que escolhem o mal”.      


sábado, 9 de janeiro de 2021

Criminterrupção: a arma dos membros do STF para assegurar o movimento totalitário

 


O STF, dentro do atual contexto político nacional, vem se constituindo na Polícia das Ideias orwelliana. A Polícia das Ideias na distopia 1984 é responsável pela fiscalização do pensamento através da linguagem (Novilíngua), controlando, assim, toda a realidade por meio da criminalização da opinião. Este é o meio utilizado por membros do STF para reduzir a capacidade de pensar da população sobre as coisas que vivenciamos hoje e que ensejam uma reflexão mais profunda. Ou seja, o que os togados da Suprema Corte estão fazendo é o que George Orwell chamou de "criminterrupção", que “significa a capacidade de estacar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso”. Este “conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Socing [o partido], e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo herético. Em suma, "criminterrupção" significa burrice protetora”. 

Esse papel ora exercido por membros do STF de controlador da realidade através da censura das opiniões divergentes à cosmovisão dominante ("criminterrupção") era de responsabilidade das instituições de ensino, da comunidade artística e da mídia, que desde a década de 1960, passaram a adotar a estratégia gramsciana de criar um novo “senso comum” por meio da dominação psicológica (hegemonia), como bem descreveram, por exemplo: Zuenir Ventura, em 1968: o ano que não terminou; Olavo de Carvalho, em A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci; Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, em A Revolução Gramscista no Ocidente; e, mais recentemente, Flávio Gordon, em A corrupção da inteligência: intelectuais e poder no Brasil. Com a perda atual de legitimidade da intelligentsia universitária, artística e jornalística, os membros do STF tiveram que assumir o protagonismo da revolução cultura, não deixando, assim, que o movimento de natureza totalitária morra.

Não é por demais lembrar que uma das características do regime totalitário é tratar como criminosos e subversivos todos aqueles que divergem da ficção oficial, transformando-os em “inimigos objetivos”. Na caça aos inimigos objetivos, diz Hannah Arendt, em Origens do totalitarismo, “é que o terror se torna o verdadeiro conteúdo dos regimes totalitários”. A definição dos inimigos ideológicos se dá antes da tomada do poder, “de sorte que”, prossegue ela, “não há necessidade de informações policiais para que se estabeleçam categorias de ‘suspeitos’. Assim, os judeus da Alemanha nazista ou os descendentes das antigas classes governantes da União Soviética não estavam realmente sob suspeita de ação hostil alguma; tinham sido declarados inimigos ‘objetivos’ do regime em decorrência da sua ideologia, e isso bastava para serem eliminados”. 

Observa-se na realidade brasileira claramente a seleção feita por membros do STF de “inimigos objetivos”. Os casos dos jornalistas Alan dos Santos e Oswaldo Eustáquio (recentemente preso), e da ex-ativista de esquerda (atualmente em prisão domiciliar), Sara Winter, enquadram-se bem nessa categoria. Eles estão sendo acusados de “crimes possíveis”, que estão associados aos “pensamentos perigosos” expostos pela liberdade de opinião, que para um regime totalitário é inadmissível. Mas dentro do regime totalitário qualquer pessoa pode ser considerado inimigo objetivo, diz Arendt: “todo pensamento que se desvia da linha oficialmente prescrita e permanentemente mutável já é suspeito, não importa o campo de atividade humana em que ocorra”. Desta forma, ninguém está imune à perseguição dos togados do STF.

A inversão da sequência de causa e efeito realizada pela acusação dos “crimes possíveis” nos remete aos romances de Franz Kafka, mais precisamente ao Processo, onde Josef K. acorda com policiais dando-lhe voz de prisão, cujo crime não se sabia do que se tratava, nem mesmo os policiais (qualquer semelhança com o caso do inquérito da fake news não parece ser mera coincidência).  Nesta inversão verifica-se uma culpa que é anterior ao crime ou uma culpa de um crime que ainda não foi tipificado (contrariado o princípio de que não há crime sem uma lei anterior que o defina). Tal como no romance de Kafka, o tribunal não apenas está processando inocentes, mas julgando-os sem deixar que saibam do que estão sendo acusados. É mais do que óbvio que numa situação desta é extremamente difícil uma defesa. Mas, como está demonstrado no referido romance, o propósito de todo o processo não é identificar a culpa de Josef K., mas de mantê-lo sobre controle tal como verifica-se nos processos contra os selecionados acima pelos membros do STF. É a condição de não partícipe na gnose criada pela ideologia vigente, defendida pelo STF, que tornam os indivíduos culpados tal como presenciamos nos romances de Kafka, através da inversão de culpa e punição.

Ao dizer que a ação do STF é em prol da defesa das instituições e da democracia, os seus membros agem, na verdade, em prol do movimento totalitário, criando, assim, uma segunda realidade, ou seja, uma realidade falsa. Esta segunda realidade é criada através do direito produzido pela Suprema Corte (inclusive já mencionei tal situação no meu artigo Imaginação Esquizofrênica publicado neste blog), sendo o tal conjunto de direito entendido como aquilo que é benéfico para o movimento. É evidente que esta segunda realidade construída pelo STF, através da legislação judiciária, busca eliminar a primeira realidade, a realidade verdadeira. É aí que se estabelece a criminalização da opinião como forma de sucumbi-la, contrariando, inclusive, as evidências adquiridas por meio da intuição, ou seja, da percepção imediata de uma verdade presente (os casos analisados no texto Imaginação Esquizofrênica exemplifica bem esta situação).       

Para melhor explicar esta macabra intenção vou recorrer à teoria do conhecimento de Platão, pois este foi o primeiro a estabelecer (pelo menos até onde eu sei) a diferença entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa) ao dizer que o primeiro corresponde ao saber, pois se destina a conhecer o que o ser é, e o segundo à aparência, que fica numa posição intermediária entre o saber e a ignorância. No Capítulo VI, da sua obra A República, há um trecho que deixa mais evidente essa diferença: “Portanto, relativamente à alma, reflete assim: quando ela se fixa num objeto iluminado pela verdade e pelo ser, compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém, quando se fixa num objeto ao qual se misturam as trevas, de alto a baixo, e parece já não ter inteligência”.

Dar-se com essa diferença, o dualismo platônico dos dois mundos: o mundo das ideias (inteligível) e o mundo das aparências (sensível). Ambos constituem duas regiões da realidade, onde cada região é dividida em duas partes, criando, assim, quatro tipos de realidades que correspondem a quatro tipos de conhecimentos: a inteligência, o entendimento, a fé e a suposição. As duas primeiras correspondem ao mundo inteligível e ao conhecimento epistêmico ou científico, já as duas últimas correspondem ao mundo sensível e à doxa ou opinião. Assim, diz Platão, “como a inteligência está para a opinião, está a ciência para a fé e o entendimento para a suposição”.

Está exposta acima a estrutura da realidade platônica, onde ambos os mundos formam uma unidade, ou seja, uma realidade total, que é representada através do mito da caverna, sendo o homem, como diz Julián Marías, em sua obra História da Filosofia, aquele que confere unidade aos dois mundos: “Introduz com ele uma unidade fundamental entre esses mundos. As duas grandes regiões da realidade unificam-se na realidade em virtude da intervenção do homem que lhe faz frente. O mundo visível e o mundo inteligível aparecem classificados pela sua referência a duas possibilidades humanas essenciais, ver e compreender. O homem que primeiramente está na caverna e que depois sai de lá, para encarar a luz, é quem confere unidade aos dois mundos. O mundo total é um mundo duplo que se integra num só, por meio do homem”.

Se a realidade inteligível (ou verdadeira) e a realidade sensível (ou aparente) compõem, na teoria do conhecimento de Platão, a estrutura da realidade, então, eliminar o mundo da doxa, através de atos de censura e de criminalização, significa eliminar também o mundo da episteme e da verdade, pois é através da opinião, expressão imediata de um fato presente, que o homem alcança a verdade (compreensão sobre o fato visto), seguindo, conforme Platão, os degraus do conhecimento, que é iniciada pela suposição, passando pela crença e pelo entendimento, até alcançar a inteligência. Isto é, são as experiências vivenciadas no mundo das aparências que possibilita chegar ao mundo das ideias, ou seja, à realidade verdadeira. 

É importante ressaltar que o mundo das aparências de Platão não é um mundo falso, mas um mundo em que as coisas reais são representações das formas ideais existentes no mundo transcendente da realidade inteligível, separando, assim, as coisas de suas essências. Este aspecto metafísico da gnosiologia de Platão não nos interessa aqui, mas a importância da opinião para ascender à estrutura da realidade inteligível.

Se na teoria do conhecimento de Platão a experiência é uma réplica das ideias, mas necessitando daquela para ativar esta, na ideologia totalitária o pensamento se emancipa da experiência, gerando a si próprio. Ou seja, é justamente a realidade das experiências sensíveis que a ideologia totalitária quer destruir por meio da construção de uma ficção, de uma realidade ficcional (uma segunda realidade). Arendt esclarece essa construção ficcional da seguinte forma: “o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidos e insiste numa realidade ‘mais verdadeira’ que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-la. O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia, por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas instituições educacionais, estabelecidas exclusivamente para esse fim, para treinar os ‘soldados políticos’”. 

No caso brasileiro, todas as universidades estão imbuídas em fornecer este sexto sentido, com o apoio da mídia e da comunidade artística. Mas como estas, como já enfatizei acima, estão passando por uma crise de legitimidade, os membros do STF passaram então a assumir o protagonismo da construção e propagação da segunda realidade, através de diversos dispositivos normativos de controle e punição para todos aqueles que são vistos como “inimigos objetivos”, sendo a criminalização da opinião o principal meio para se alcançar tal objetivo.   

Um outro elemento peculiar de todo o pensamento ideológico, citado por Arendt, e que já nos referimos acima, é que o pensamento ideológico busca emancipar o pensamento da experiência, desmontando, como vimos, a estrutura da realidade: “O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela: isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade”. Esta dedução, segunda ela, “pode ser lógica ou dialética: num caso ou no outro, acarreta um processo de argumentação que, por pensar em termos de processos, supostamente pode compreender o movimento dos processos sobre-humanos, naturais ou históricos”. Esta compreensão é atingida “pelo fato de a mente imitar, lógica ou dialeticamente, as leis dos movimentos ‘cientificamente’ demonstrados, aos quais ela se integra pelo processo de imitação” (este é um exemplo típico da anulação do referente quando da utilização da linguagem, permanecendo apenas o símbolo e o significado como elementos).   

Com a desestruturação da estrutura da realidade, passa a imperar a tirania da lógica (e da mentira), que “começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos”, diz Arendt. Com essa submissão, as pessoas renunciam a sua liberdade de pensamento e de expressão, pois a tirania da lógica é justamente direcionada para que as pessoas jamais comecem a pensar, destruindo toda a relação com a realidade (o referente). Dentro do cenário totalitário, como afiança Arendt: “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)”. 

A construção de uma segunda realidade é uma das características dos movimentos gnósticos e o totalitarismo é um movimento gnóstico. Os gnósticos substituem a experiência cristã por uma variedade de ideologias, que tendem a tomar o lugar das religiões. Entretanto, esta passagem de uma realidade a outra não se faz diretamente, mas por meio de um encantador, diz Eric Voegelin, em suas obras A Nova Ciência da Política e Hitler e os Alemães. Este encantador irá persuadir os demais a seguir a fantasia gerada pela segunda realidade, “uma fantasia concupiscente” (tal como fizera Dom Quixote com Sancho Pança no caso dos moinhos de vento, transformados pelo primeiro em gigantes), que desapontada pode acarretar explosões de raiva, explosão esta que demonstra uma falta radical de contato com a realidade. Ademais, ao estabelecer uma fantasia de concupiscência, mudando a ênfase da realidade para uma falsa imagem da realidade (segunda realidade), os movimentos gnósticos assumem uma postura de consciência revolucionária, criando visões paradisíacas de mundo na terra em um tempo futuro indeterminado, mas que deixa rastros de destruição no tempo presente (como é percebido hoje, pelo menos para aquele que continua na primeira realidade).

O gnosticismo, alerta Voegelin, torna a negação da realidade como uma questão de princípio, mesclando o mundo da realidade com o mundo dos sonhos. Ademais, cria uma confusão mental ao considerar a sua interpretação insana da realidade como moral e as virtudes da sabedoria como imoral. Para os gnósticos quem se recusa a compartilhar desta fantasia é estigmatizado moralmente e tem sua liberdade de pensamento e de expressão tolhidas como fazem os membros do nosso STF. “A corrupção moral e intelectual que se expressa nos somatórios dessas operações mágicas”, ressalta Voegelin, “pode impregnar uma sociedade de atmosferas estranha e fantasmagóricas de um manicômio, como experimentamos na crise ocidental de nossos dias”. 

O sucesso do gnosticismo moderno, com a sua liberalização das forças humanas para a construção da nova civilização, foi de garantir às atividades intramundanas a salvação como prêmio. Assim, como argumentou Voegelin, “Quanto mais fervorosamente todas as energias humanas são empenhadas no grande empreendimento da salvação através da ação imanente no mundo, mais distantes da vida do espírito se colocam os seres humanos engajados na empresa”.

Os objetivos das revoluções gnósticas são “o monopólio da representação existencial”, a “alteração na natureza do homem e a criação de uma sociedade transfigurada”. É a partir do “misticismo gnóstico com relação aos dois mundos [o bom e o mau]” que “emerge o padrão dos governos universais que veio dominar o século XX”, que tem suas expressões máximas no nazismo e no comunismo, ou seja, nos regimes totalitários. Estes regimes são exemplos, ressalta Voegelin, “de tentativas gnósticas de congelar a história num reino eterno e final neste mundo”.

Essa dualidade gnóstica dos dois mundos reforça o nosso entendimento de que eliminação da realidade sensível através da criminalização da opinião destrói toda a estrutura da realidade, pois o mundo visto como mau, análogo àquele das aparências de Platão, é dissociado completamente do mundo visto como bom pelos gnósticos, análogo ao mundo das ideias platônicas, onde entre eles não há qualquer elemento unificador, como há na estrutura realidade de Platão simbolizada através do mito da caverna, pois para a esquizofrenia gnóstica o mundo material é criação de um demiurgo, que é uma emanação inferior de Deus. Ao não estabelecer qualquer conexão do mundo material com o mundo celestial, a realidade sensível fica à mercê dos detentores da gnose (o encantador), cuja missão é transformar este mundo mau em um paraíso.

No atual cenário sociopolítico brasileiro, os detentores da gnose são justamente os membros do STF, que passaram a construir uma segunda realidade e a punir quem se arvora a se manter firme no interior da primeira realidade. A "criminterrupção" ou criminalização da opinião é o meio para impor a tirania da lógica, que elimina qualquer expressão do pensamento livre, estabelecendo também um modelo de pensamento dissociado da experiência, que, como já sinalizamos, destrói toda a estrutura da realidade, viabilizando a “fantasia concupiscente”, mas cujo resultado previsto não é o paraíso, mas o seu oposto.          

Dequex Araújo Silva Junior 

sábado, 5 de setembro de 2020

Funk, Pagode, Axê, Hip Rock, Música Eletrônica e outras Mixórdias Rítmicas como Impulsionadoras da Incivilidade e Violência


Em um diálogo com os irmãos Adimanto e Glauco, filhos de Aríston, sobre a educação dos jovens gregos, Sócrates argumentou que a música e a ginástica eram fundamentais para a formação das crianças, de forma geral, e dos guardiões, de forma específica, e que os encarregados da cidade – que ele (Sócrates), juntamente com seus amigos, está idealizando – devem estar vigilantes para que as inovações na música e na ginástica não atentem contra suas respectivas regras, pois isto pode ocasionar modificações significativas nos costumes, nas leis e nos hábitos. A partir deste diálogo passei a refletir sobre a relação que há entre o gênero musical e a Segurança Pública.

Logo no início do diálogo, Sócrates vai dizer que “deve ter-se cuidado com a mudança para um novo gênero musical, que pode pôr tudo em risco. É que nunca se abalam os gêneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade”. Adimanto concordou dizendo que é através da música “que a inobservância das leis facilmente se infiltra passando despercebida”. Sócrates acrescentou dizendo que é por meio de brincadeiras aparentemente inocentes e desprovidas de maldades que a corrupção se introduz “aos poucos, deslizando mansamente pelo meio dos costumes e usanças”. “Daí deriva, já maior”, disse Adimanto, “para as convenções sociais; das convenções passa às leis e às constituições com toda a insolência, ó Sócrates, até que, por último, subverte todas as coisas na ordem pública e na particular” [1].

Chega-se à conclusão de que o gênero musical é de importância fundamental no processo educacional das crianças e dos jovens para a manutenção do comportamento civilizado e dos bons hábitos herdados tais como, diz Sócrates: “o silêncio que os mais novos devem guardar perante os mais velhos; o dar-lhe lugar e levantarem-se; os cuidados para com os pais; o corte de cabelo, o traje, o calçado e toda a compostura do corpo, e demais questões desta espécie”[2].

Observa-se no Brasil, mas não só aqui, a proliferação de gêneros musicais corruptivos que se enquadram perfeitamente no diálogo acima. O funk, o pagode, o axê e o hip rock exemplificam bem os gêneros musicais que abalam a estrutura normativa da moral e das leis positivas. A exploração da sensualidade e do mau gosto é nítida nesses gêneros, estimulando a concupiscência e libertando todo tipo de intemperança. Como denunciou Mário Ferreira dos Santos, há mais de 60 anos, os “bárbaros intramuros”, vinculados à arte, cometeram o impropério de dissociar a estética da ética[3], ou seja, de desconsiderar completamente a ideia de summum bonum (o Sumo-bem, que se refere Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino etc., ou seja, a razão razoável, que não deixa de lado os valores e as ideias de bem e de belo).

Esta relação entre estética e ética é tratada no diálogo acima quando Sócrates diz que “a beleza ou a fealdade de forma dependem do bom ou do mau ritmo. Logo, a boa qualidade do discurso, da harmonia, da graça ou do ritmo depende da qualidade do caráter, não daquele a que, sendo debilidade de espírito, chamamos familiarmente ingenuidade, mas da inteligência que verdadeiramente modela o caráter na bondade e na beleza”. Mais adiante conclui: “Em todas estas coisas [referindo-se as artes de maneira geral] há, com efeito, beleza ou fealdade. E a fealdade, a arritmia, a desarmonia são irmãs da linguagem perversa e do mau caráter; ao passo que as qualidades opostas são irmãs e imitações do inverso, que é o caráter sensato e bom”[4].     

A vulgaridade e a ausência do senso de obscenidade presentes nos gêneros musicais referidos acima poder ser percebidas também em outras áreas estéticas. Theodore Dalrymple faz referência ao niilismo estético que assola o cenário contemporâneo e o fascínio artístico pelo punk e pelo grunge, ou seja, pela “adoção deliberada da feiura e do mau gosto”, denunciando também a separação entre estética e ética. O autor inglês, de várias obras publicadas no Brasil, estabelece uma relação causal entre a vulgarização do comportamento e os males sociais que hoje evidenciamos. Referindo-se mais especificamente à Grã-Bretanha diz: “A bastardia generalizada da Grã-Bretanha não é sinal de um aumento da autenticidade de nossas relações humanas, mas uma consequência natural do hedonismo sem limites, que conduz rapidamente ao caos e à miséria, especialmente entre os mais pobres. Livre-se das regras, e a discórdia violenta virá em seguida”. Mas o autor faz um alerta deveras importante: “a revolução nos hábitos britânicos não veio por meio de qualquer erupção vulcânica das bases; ao contrário, veio como extensão do pensamento da elite intelectual, que começou a desprezar a tradição”[5].     

Disto tudo exposto aqui, fica uma questão para reflexão: qual a política de segurança pública que pode atender às expectativas da sociedade no que tange à redução e ao controle da incivilidade e da criminalidade sem que se reverta a barbárie inserida nas artes, de forma geral, e na música, de forma específica?  Ou seja, é possível reduzir a violência e a criminalidade através de políticas públicas de segurança mantendo uma estética dissociada da ética?       




Dequex Araújo Silva Junior
Doutor em Ciências Sociais
Membro do Instituto Brasileiro de Segurança Pública
Membro fundador do Instituto Antônio Lacerda


[1] PLATÃO. A República. Tradução Heloísa da Graça Burati. – São Paulo: Rideel, 2005.

[2] Idem.

[3] SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão vertical dos bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012.

[4] Platão, op. Cit.

[5] DALRYMPLE, Theodore. Nossa cultura... ou o que restou dela: 26 ensaios sobre a degradação dos valores. São Paulo: É Realizações, 2015.  


domingo, 2 de junho de 2019

A imaginação esquizofrênica: a transexualidade em questão


Partindo de uma elucubração filosófica para distinguir e, por conseguinte, verificar a similaridade entre as coisas, começaremos por estabelecer que vivemos dois mundos distintos: o mundo das coisas reais e o mundo da imaginação. Cada um desses mundos corresponde a uma realidade específica: o mundo das coisas corresponde à realidade real e o mundo da imaginação corresponde à realidade ficcional. Entretanto, todo o mundo imaginativo deve se basear no mundo das coisas reais, ou seja, toda realidade ficcional deve se fundar na realidade real, pois caso isso não ocorra, caso haja um antagonismo extremo entre eles, a ficção, ou seja, a imaginação torna-se esquizofrenia.

A realidade real necessariamente tem que ser diferente da realidade ficcional para que possamos percebê-las como realidades distintas. Uma obra imaginativa se distingue da realidade por ser ela uma antinomia desta. Mas ela é antinômica, mas não contraditória, pois se assim fosse não poderíamos compará-las. Isso significa dizer que o mundo imaginativo deve ter uma semelhança com o mundo das coisas para que se possa compreender a diferença: um gato no mundo imaginativo não pode ser diferente de um gato no mundo real. Quando perdemos, entretanto, a nossa capacidade de distinguir o mundo real do mundo ficcional, ou seja, quando não mais conseguimos distinguir uma coisa real de uma coisa ficcional é porque adentramos num estado de esquizofrenia paranoica.

Quando comparamos duas realidades estamos buscando verificar o que há de semelhante e o que há de diferente. Isso significa, como alerta Mario Ferreira dos Santos, que “o semelhante não é uma categoria do idêntico”, pois “dizemos que alguma coisa é idêntica quando é igual a si mesma”. Por exemplo, uma mesa só pode ser idêntica a si mesmo porque não é outra. Ou seja, nas palavras de Santos, “Qualquer parte da realidade só pode ser considerada idêntica a si mesma no sentido de que não é outra coisa”.

É fundamental para o homem, a partir de suas experiências, agrupar os semelhantes através da atividade de diferenciação. A partir da forma, por exemplo, o homem pode, por meio da abstração, perceber as semelhanças entre as árvores, estabelecendo o conceito de árvore. Mario Ferreira dos Santos, em sua obra Filosofia e Cosmovisão, diz que “Um conceito, ao incluir um conjunto de fatos singulares, exclui outros”. Ou seja, quando se conceitua os vertebrados, excluem-se os invertebrados. Esse dualismo, prossegue o filósofo, “é uma decorrência do ato racional de conceituação, ou seja, de dar um conceito, com uma denominação comum, a certo número de fatos que nos parecem idênticos. Ao procedermos assim, já fazemos uma exclusão, quer dizer, separamos tudo quanto não é semelhante ao que conceituamos”. Segundo ele, “É característica de nosso espírito desdobrar-se em duas funções: a que procura o semelhante e o que percebe o diferente”. A primeira “é a que melhor corresponde à natureza do homem, por simplificar e assegurar uma economia ao trabalho mental”; a segunda, “é mais cansativa”, pois se faz necessário uma racionalização constante.

Essa pequena introdução se fez necessária para tentar compreender um fato noticiado no G1, na data de 31/05/2019, por Cíntia Acayaba e Léo Arcoverde, intitulado “Polícia de SP registra 1ª transexual como vítima de feminicídio; casos aumentam 54% no 1º quadrimestre”. O próprio título já indica toda uma manobra política de estabelecer uma situação de similaridade entre mulher e transexual, que por natureza são coisas distintas. Essa similitude é meramente ficcional, pois se o homem, como argumenta Ralph Linton, em sua obra o Homem: uma introdução à antropologia, “está sujeito exatamente às mesmas leis biológicas que outros mamíferos e deve suas variações atuais aos mesmos processos evolutivos”, e se há uma divisão biológica sexual entre macho e fêmea, como nos demais mamíferos, então não pode haver semelhança naquilo que a natureza estabeleceu como diferente. Mesmo que não possamos distinguir por meio de evidências subjetivas uma mulher de uma transexual não significa dizer que objetivamente sejam similares, pois ainda persistem diferenças biológicas significativas e que são imutáveis por natureza. Um exemplo disso é a celeuma hoje existente de transexuais participando de competições esportivas femininas.

Entretanto, o fato enseja uma melhor análise. O cerne da matéria é que uma transexual foi morta pelo seu companheiro e, de forma indutiva, a polícia paulista considerou de bom alvitre enquadrar o crime na lei de feminicídio, criada em 2015.  A lei 13.104/2015 estabelece, grosso modo, que o feminicídio se dá quando um homem mata uma mulher por sua condição de pertencimento ao sexo feminino. Ou seja, é a condição de sexo feminino que configura o feminicídio. A matéria diz que em outubro de 2016, o Ministério Público de São Paulo já havia denunciado por crime de feminicídio um ex-companheiro de uma transexual. O Ministério Público partiu do princípio de que “Quando há alteração no registro civil de um homem para mulher e quando há uma autodeterminação no campo psicológico, o homem passa a ser considerado, no mundo jurídico, como mulher”. Ou seja, para esses profissionais da área do Direito o mundo jurídico é um mundo à parte, não necessitando está em conexão com o mundo real, pois são as evidências imaginativas que prevalecem sobre as evidências objetivas.  

Vamos tomar como referência essa cosmovisão jurídica e imaginar que um homem, que em tempos passados tenha vivido matrimonialmente com uma mulher, onde esta depois se transformou num transexual masculino, não conformado com a separação, mata essa mulher que mudou o nome para Marco Antônio e se autodeterminou psicologicamente homem. Há aqui um feminicídio ou um homicídio? Acredita-se, por analogia, que para o mundo jurídico, essa mulher, que agora é transexual masculino, não poderá ser enquadrada na lei 13.104/2015, pois lhe falta naquele momento a condição de sexo feminino. Isto é, para o mundo jurídico, a condição sexual (ser homem ou ser mulher) é temporal e não uma condição natural (biológica).

Nem no mundo imaginário isso é possível! No mundo real um rinoceronte, mesmo que por mutilação perca os seus chifres, não deixa de ser um rinoceronte; um urso, mesmo que coloque um chifre no meio da testa, não deixa de ser um urso. Mas no mundo imaginário um cavalo com chifre não é um cavalo, mas um unicórnio; uma mulher com rabo de peixe não é uma mulher, mas uma sereia. Por tanto, no mundo real um homem, mesmo tendo feito uma cirurgia de mudança de sexo, continua sendo um homem (um eunuco), tal como um cavalo castrado continua sendo um cavalo. No mundo imaginário, por sua vez, um homem que muda de sexo não pode ser mais um homem, muito menos uma mulher, é um imaculado, um transexual. Desta forma, somente no mundo esquizofrênico, que não consegue distinguir o que é real e o que imaginativo, um transexual pode ser classificada como mulher ou uma transexual pode ser classificado como homem. 
  
Essa esquizofrenia pode ser constatada em outra matéria, esta mais longínqua, também publicada no G1, em 19/11/2015, por Renan Ramalho, intitulada “Relator no STF vota a favor do uso de banheiro feminino por transexual”. Nesta matéria, os doutos superministros abriram votação para decidir sobre o direito das transexuais de usarem os banheiros femininos a partir da “identidade de gênero”, ou seja, como se percebem, independente do sexo. Essa preocupação dos superministros se deu por conta de uma transexual ter sido impedida de usar o banheiro feminino de um shopping em Santa Catarina. Na matéria, a advogada da vítima sustentou a seguinte tese: “Quando se discute se uma transexual pode ou não fazer uso do banheiro feminino, ou seja, do banheiro pertencente ao gênero com o qual se identifica está se discutindo ainda seu direito à identidade e à autodeterminação sexual, à honra, à intimidade e à privacidade. Está se discutindo se essa mulher e tantas outras e outros na mesma situação têm ou não o direito de viver sem marginalização”.

Para analisar a situação acima vou recorrer ao raciocínio lógico. Vamos utilizar a definição aristotélica de homem como animal racional e falante. Nesta definição, o homem é a espécie; o animal é o gênero; e o racional e falante a diferença específica, ou seja, é o que diferencia o homem (e também a mulher) de todos os outros animais. Por essa definição, verifica-se que homem e mulher são espécies do mesmo gênero (animal). Vou recorrer ao silogismo para buscar um melhor entendimento sobre essa questão de identidade de gênero ressaltada na situação acima: Todas as mulheres são do sexo feminino; Fabiana é mulher; logo, é do sexo feminino. Temos então uma classificação: Fabiana pertence à espécie mulher, que pertence, por sua vez, ao gênero feminino.

Para o mundo jurídico, descrito pelos superministros e pela advogada da transexual, esse silogismo não tem valor algum, pois o homem pode ser classificado na espécie mulher e, por conseguinte, no gênero feminino, justamente porque a identidade é definida a partir de como o indivíduo se percebe e não como ele é realmente. A verdade não está mais na razão (sujeito) ou nas coisas (objeto), mas na imaginação, no sentir-se. Ou seja, Carlos pode pertencer ao gênero feminino caso se sinta uma mulher, não importando se originalmente esteja classificado na categoria de homem. É a chamada autodeterminação, que passou a adquirir um poder sobrenatural, que se sobrepõe à realidade real, podendo a pessoa ser o que quiser, bastando apenas se sentir. A performatização é o que importa. É óbvio que um enunciado que diga que um homem é uma mulher é uma contradição, pois um nega o outro da mesma forma que um enunciado que diga que um cavalo é um gato, logo, é falso, pois para um enunciado ser verdadeiro, diz Mario Ferreira dos Santos, tem que ter “uma identificação entre a representação que temos de um fato e esse fato. Se o que enunciamos de um fato corresponde ao fato, diremos que esse enunciado é verdadeiro”, mas se o que enunciamos de um fato não corresponde ao fato, diremos que o enunciado é falso. É a perda do senso de realidade que caracteriza esse interregno entre o mundo real e o mundo imaginativo, que é justamente onde se encontra o mundo jurídico dos nossos superministros do STF, legitimado por alguns juízes, promotores públicos, advogados e delegados.

Entretanto, esse mundo jurídico não é o mundo jurídico propriamente dito, mas um mundo fictício criado por uma mentalidade esquizofrênica, que quer tornar o mundo a imagem e semelhança de sua mente doentia. Há nesses dois fatos uma manipulação psicológica para que, através da dissonância cognitiva, a opinião pública passe a aceitar, mesmo contrariando as crenças, as atitudes e os valores estabelecidos, a similitude entre uma mulher e um transexual. São os elementos da cognição que precisam ser alterados por meio da manipulação psicológica para que se aceite essa equivalência. Os elementos da cognição refletem a realidade. Assim, se for criada uma nova realidade, mesmo que seja fictícia, há grandes possibilidades de que os elementos da cognição sejam também alterados, bastando apenas que a dissonância seja reduzida ou transformada em consonância. Não é por acaso que a mídia atualmente vem propagando constantemente a imagem de transexuais, inclusive por meio de telenovelas e desenhos animados como é o caso da animação brasileira Super Drags que tinha a previsão de passar na Netflix.

Faz-se necessário uma digressão para explicar melhor o que é dissonância cognitiva, pois essa prática de manipulação psicológica tonou-se uma práxis constante em várias esferas da sociedade, especialmente na educação como bem pontuou Pascal Bernardin no livro Maquiavel Pedagogo. Em sua obra Teoria da dissonância cognitiva, Leon Festinger diz que há dissonância quando dois elementos da cognição não se ajustam entre si: “Podem ser incoerentes ou contraditórios, os padrões culturais ou do grupo podem ditar que não se harmonizam e assim por diante”. O autor exemplifica: “se uma pessoal já estivesse endividada e também comprasse um novo automóvel, os elementos cognitivos correspondentes seriam dissonantes entre si”. Exemplificando agora a partir da situação do uso de banheiros femininos por transexuais: há uma relação dissonante se uma mulher soubesse que só há mulheres no banheiro feminino, mas também ficasse temerosa de encontrar uma transexual lá. Conforme Festinger, “A dissonância existiria por causa do que a pessoa tinha aprendido ou das expectativas que passa a alimentar, por causa do que é considerado usual ou apropriado, ou por muitas outras razões”. 

No caso da equivalência entre mulher e transexual podemos encontrar várias dissonâncias: dissonância de inconsistência lógica, pois uma pessoa pode acreditar que um homem pode se transformar em uma mulher, mas também crer que o médico é incapaz de transformar um homem em mulher pela via da cirurgia de mudança de sexo; dissonância cultural, pois um homem adentrar ao banheiro feminino é dissonante com o comportamento cultural do uso de banheiros femininos exclusivamente por mulheres; e, dissonância de opinião, pois a opinião mais geral é de que o banheiro feminino é de uso exclusivo de mulheres, mas num determinado momento, por pressão de opiniões específicas, se aceita a presença de um transexual no banheiro feminino.

A manipulação psicológica por meio da dissonância cognitiva é uma estratégia da esquerda socialista para modificar pensamentos e comportamentos, onde a linguagem tem um papel preponderante nesse processo revolucionário. George Orwell descreveu formidavelmente esse processo na sua obra de ficção 1984. O objetivo da novafala ou novilíngua é criminalizar o pensamento por meio da linguagem. A dissonância cognitiva se dá através do “duplipensamento”, que é justamente “defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas; recorrer à lógica para questionar a lógica, repudiar a moralidade dizendo-se moralista, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo o que fosse preciso esquecer, depois reinstalar o esquecido na memória no momento em que ele se mostrasse necessário, depois esquecer tudo de novo sem o menor problema; e, acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao processo em si. Esta a última sutileza: induzir conscientemente a inconsciência e depois, mais uma vez, tornar-se inconscientemente do ato de hipnose realizado pouco antes. Inclusive entender que o mundo em ‘duplipensamento’ envolvia o uso do duplipensamento”. Essa citação é bastante esclarecedora no sentido de compreender como funciona a mentalidade esquerdista socialista. Não são tais contradições verificadas nos discursos retóricos da nossa intelligentsia socialista? Ou seja, não é o mundo do “duplipensamento” que se impõe ao se buscar similaridade entre a mulher e a transexual?

O julgamento do caso do direito do transexual utilizar o banheiro feminino à época foi adiado pela divergência de opiniões entre os superministros. O Relator, Luís Roberto Barroso, se sustentou em Kant e na sua concepção de dignidade humana para justificar o seu voto favorável, afirmando “que dignidade é um valor ‘intrínseco’ a toda e qualquer pessoa, sendo dever do Estado garantir sua efetividade conforme as escolhas de cada um”. Em seguida disse “que o ‘suposto constrangimento’ causado às demais mulheres num banheiro feminino pela presença de uma transexual ‘não é comparável ao mal estar’ suportado por ela se tivesse que usar o banheiro masculino”. Para finalizar, o superministro-relator, exemplifica: “imagine-se o desconforto que teria uma pessoa como a Roberta Close ou uma pessoa como Rogéria se forem obrigadas a frequentarem um banheiro masculino, que seria uma agressão à natureza dessas pessoas, uma agressão à identidade dessas pessoas, ao modo como elas se percebem, ao modo como elas vivem as suas vidas”. Já o superministro Luiz Fux foi mais coerente e precavido: “na análise de temas com ‘desacordo moral tão expressivo” que dividem a sociedade, é preciso mais tempo para uma decisão definitiva do Supremo, citando ‘indagações populares’ sobre a questão”. 

À guisa de conclusão, a homossexualidade não é o problema, nunca foi, pois desde sempre há relações entre pessoas do mesmo sexo. O problema é quando se politiza a sexualidade para transformar a sociedade, modificando toda uma cultura por conta de um desejo vinculado a um prazer sexual. O que está por trás de tudo isso não é a defesa da dignidade da transexual, mas uma revolução social por meio da revolução sexual, revolução esta notadamente delineada pela Escola de Frankfurt através, por exemplo, de Herbert Marcuse. Dirá este em seu livro Contra-revolução e revolta: “a revolução sexual não é revolução se não se converter numa revolução do ser humano, se a libertação sexual não estiver em completa convergência com a moralidade política”. Essa libertação sexual nada mais é que a libertação dos instintos, onde esta se converterá, segundo Marcuse, “numa força de libertação social somente no grau em que a energia sexual se transformar em energia erótica, lutando por mudar o modo de vida numa escala política e social”.

Não considero razoável que uma opção sexual esteja acima de questões religiosas, morais e tradicionais enraizadas na cultura há mais de dois mil anos. Não considero razoável que os interesses de um pequeníssimo grupo estejam acima dos interesses da maioria. Somente na mente esquizofrênica da esquerda socialista o irrazoável se harmonizar dialeticamente com o razoável da mesma forma que o irracional e o racional, o verdadeiro e o falso. Só na mentalidade esquizofrênica da esquerda socialista a imagem não precisa ter qualquer correspondência com a realidade, pois vivem no mundo do duplipensamento, que é na verdade um mundo esquizofrênico.   

Dequex Araújo Silva Junior
Doutor em Ciências Sociais
Membro do Instituto Brasileiro de Segurança Pública
Membro fundador do Instituto Antônio Lacerda